14/02/2025
Drama

2046

Nos anos 1960, um escritor vive intensas histórias de amor com quatro mulheres, uma jogadora, duas prostitutas e a filha do dono do hotel onde mora. Ele procura reconciliar seus sentimentos e memórias nas histórias que escreve, como a ficção futurista "2046" - sobre um trem que parte levando a bordo passageiros em busca de momentos do passado, numa viagem da qual ninguém, exceto um, voltou. Na Mubi

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Há um parentesco inegável entre Amor à Flor da Pele (2000), sobre a paixão entre apenas um homem (Tony Leung Chi-wai) e uma mulher (Maggie Cheung), e 2046, onde o mesmo homem se relaciona com outras quatro mulheres, ainda que persista a lembrança daquele grande amor do passado.

O tratamento visual apurado dos dois filmes tem muito a ver, com uma iluminação difusa, muita penumbra, cenas de chuva e até de vez em quando uma música na voz de Nat King Cole (The Christmas Song desta vez), para evocar o clima do filme de 2000. Mas não se trata de uma seqüência, pelo menos, não nos moldes da grande indústria cinematográfica. O artífice Wong Kar-wai apenas insiste em temas que lhe são caros: a irracionalidade e força da paixão e a impossibilidade de preservar ou recuperar o passado. E faz aqui um vôo mais longo e profundo.

Há uma ambição maior nesta empreitada, que alinha dois planos de narrativa: a vida real de Chow (Tony Leung) em vários momentos dos anos 60, e o plano de uma ficção futurista que ele está escrevendo e que toma o nome de “2046”.

Estes algarismos têm outros sentidos dentro da história, o principal deles formarem o número de um quarto de hotel onde moram, ao longo do tempo, pelo menos duas das mulheres da vida de Chow – Lulu (Carina Lau) e Bai Ling (Zhang Ziyi). Chow mora ao lado, no quarto 2047, espiando a vida das ocupantes do quarto vizinho através de um buraco (embora ele também seja eventualmente espionado do mesmo modo).

Esta vocação de voyeur fornece uma metáfora evidente para o próprio cinema e para a profissão de Chow, um escritor de histórias eróticas populares que são estreitamente calcadas em suas experiências pessoais e das mulheres de sua vida. Mas o filme não se esgota nesta possibilidade de linguagem cifrada. Há emoções genuínas no caminho de Chow, um homem maduro que foi se tornando cínico com suas relações ao longo da vida, ainda que não consiga expurgar seus sentimentos.

A história alinha um quarteto fenomenal de atrizes. Carina Lau como a sofrida prostituta Lulu, a quem o destino reserva um final trágico. A jogadora de cartas Su Lizhen (Gong Li) – este o mesmo nome da personagem de Maggie Cheung em Amor à Flor da Pele -, que salva Chow da ruína financeira mas se recusa a partir com ele. Outra prostituta, Bai Ling (Zhang Ziyi), que tenta incansavelmente estabelecer com Chow uma relação amorosa, mas ele insiste em pagá-la. A filha do dono do hotel em que ele vive, Wang (Faye Wong), que o ajuda a escrever suas histórias mas é incapaz de enxergar o momento em que Chow se apaixona por ela.

A tessitura destas paixões frustradas lembra o poema Quadrilha, de Carlos Drummond de Andrade (“João amava Teresa que amava Raimundo...”). O amor, aqui, percorre linhas paralelas, que nunca se encontram por mais intensas que ardam suas faíscas.

Maggie Cheung, a musa de Amor à Flor da Pele, aqui comparece em duas rápidas cenas em flashback. Ainda assim, é mais do que ela tinha na primeira montagem do filme, que participou da competição no Festival de Cannes de 2004. Naquela versão, que levou quatro anos em produção, Maggie não ficava mais do que alguns segundos na tela. Depois de Cannes, o diretor passou outros quatro meses numa nova remontagem.

Na nova edição, o filme ganhou mais quatro minutos, reordenando as cenas de Faye Wong, acrescentando mais uma cena de Carina Lau (como atendente do trem futurista), e renovando inteiramente os créditos finais. Foi remontada também a esplêndida trilha sonora, onde se misturam boleros (Siboney, na voz de Connie Francis), ópera (Casta Diva de Bellini) e música instrumental (do polonês Zbigniew Preisner, parceiro constante de Krzysztof Kieslowski, do japonês Shigeru Umebayashi e outros).

 

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