Aos fatos: há uma indiscutível novidade neste que é o primeiro filme em língua inglesa de Wong Kar-wai e em que ele aposta justamente numa não-atriz, a cantora novaiorquina Norah Jones, como protagonista. Duas ousadias nada desprezíveis do cultuado diretor que abandonou seu território em mais de um sentido. Não esqueceu, porém, da gramática da dor e da perda, que no mundo cinematográfico criado por ele, governam os destinos humanos como deuses caprichosos e vorazes, devoradores de vidas e corações.
Foi a voz de Norah Jones, que o diretor nem conhecia pessoalmente, o que o atraiu para convidá-la a atuar – coisa que nem passava pela cabeça dela, aliás. “Uma voz contém diversos personagens dentro dela, com diferentes histórias cada um”, descreveu Kar-wai, dentro do seu habitual estilo poético e compassado, na coletiva do filme, que abriu o Festival de Cannes em 2007.
O diretor procurou mesmo não lembrar o público de que Norah é uma cantora – aliás, famosíssima e premiada com Grammys -, evitando colocar suas canções na trilha. Para embalar a jornada da personagem Elizabeth/Lizzie pelos EUA (Nova York, Memphis e Las Vegas), ele preferiu recorrer aos americaníssimos Otis Redding e Ry Cooder (que assina a trilha) e também ao tema principal de Amor à Flor da Pele - só que não como era tocado no longa, mas como foi repaginado para musicar um curta, inspirado na história original de Um Beijo Roubado, do escritor Lawrence Block, que devia ter entrado naquele longa, mas ficou de fora na montagem final.
Um Beijo Roubado, este longa, nasceu diretamente daquele curta descartado e serviu à dupla vontade de Kar-wai de fazer um filme nos EUA e com Norah. Para ele, esta história corresponde à cantora-atriz. O diretor, que trabalhou com Block para montar o roteiro, estendeu geográfica e emocionalmente a história que, originalmente, se passava inteiramente numa lanchonete. Neste filme, a lanchonete é o ponto de partida, fica em Nova York e é comandada por Jeremy (Jude Law).
Jeremy é uma dessas pessoas que ficam toda a vida atrás de um balcão, observando a passagem de diversas outras. Um pote de vidro contendo diversos molhos de chaves, último sinal de histórias de amor rompidas, é a testemunha do trânsito emocional intenso entre as mesas de seu bar – em que os fios de alguns romances também enredaram o próprio Jeremy.
Lizzie, abandonada pelo namorado, é a mais recente integrante desse fauna nômade. Defensiva, ela custa a abrir seu coração com Jeremy. Mas ele tem prática como ombro amigo e sempre guarda algumas fatias de torta de mirtilo na geladeira, prato ideal para adoçar a solidão dessas noites vagas.
Em busca de novas experiências, Lizzie viaja pelos EUA, trabalhando como garçonete. De cada ponto, ela envia cartas detalhadas a Jeremy, que tudo acompanha, com uma emoção que lembra outra história de amor à distância - Nunca te Vi, Sempre te Amei. Só que aqui Jeremy e Lizzie já se conhecem. A questão é se voltarão ou não a ver-se.
Para o cineasta, o filme “não é sobre a jornada, mas sobre a distância”. Pelo mesmo motivo, ele saiu de seu habitual figurino visual, escolhendo a amplidão do cinemascope. “Queria o máximo de espaço, porque ele te dá uma certa liberdade, você pode escolher”.
Cinematograficamente, mais do que essas paisagens americanas já tão visitadas antes – como pelo Wim Wenders de Paris, Texas (1984) e Estrela Solitária (2005) -, Um Beijo Roubado provavelmente será lembrado pelo beijo entre Norah Jones e Jude Law, que nasce aspirando seu lugar na história dos mais bonitos do cinema. Kar-wai acredita tanto na força dramática e emocional desse beijo que se deu ao luxo de entregá-lo na tela no mais absoluto silêncio, sem o apoio de uma única nota musical.
Não se deve deixar de mencionar, sob pena de uma grosseira injustiça, as participações inspiradas dos atores David Strathairn, como um policial alcoólatra e emocionalmente destruído, Rachel Weisz, como sua mulher, e Natalie Portman – arrasando os estereótipos que se possa ter construído sobre ela, encarnando Leslie, uma sexy e inveterada jogadora de pôquer, dentro de um figurino colorido e cafona e corte de cabelo curto e loiro.
Se é de sentimentos intensos que se faz um bom romance, há tudo para considerar este trabalho de Wong Kar-wai um grande filme.
Em sua première, em Cannes, não faltaram críticos de várias nacionalidades para apontar que não há novidades ou que o grande diretor de Amor à Flor da Pele (2001) e 2046 (2004) pode estar se repetindo. Tudo é possível, assim como quem critica ter esquecido como é estar apaixonado e, com isto, ter perdido a senha para mergulhar no filme de coração aberto. Porque nem só de racionalidade cartesiana se faz uma crítica de cinema.