L’Apollonide – Os amores da casa de tolerância, novo filme do francês Bertrand Bonello (O pornógrafo, Tirésia) situa-se, quase em sua totalidade, apenas no imóvel que dá título ao longa. Apesar disso, não é um filme claustrofóbico. Pelo contrário. Ao localizar toda a sua narrativa num único ambiente, o diretor cria uma espécie de universo à parte, um mundo único, com resquícios e reflexos do mundo exterior, mas que, ainda assim, existe e se encerra em si mesmo.
As poucas saídas das personagens ao longo da narrativa e o prólogo, que pode criar uma bem-vinda confusão – além de levantar um debate bastante sério e em voga na França sobre a legalização da prostituição –, servem como uma lembrança de que aquele oásis (ou inferno, dependendo do ponto de vista) existiu em algum lugar do nosso planeta, numa época passada: a virada do século XIX para o XX. Mas, ainda assim, até por sua aparência de cenário teatral, poderia ser um lugar hoje, para onde as pessoas iriam reviver costumes do passado.
A trama, assinada pelo diretor, abre-se à medida que as personagens ganham o centro do palco e seus pequenos dramas pessoais somam-se um a um, criando um efeito conjunto. Bonello dá tempo suficiente para que conheçamos e nos identifiquemos (ou não), entrecruzando as histórias individuais das prostitutas do L’Apollonide, um bordel dirigido com mão firme por Marie-France (Noemie Lvovsky), que, embora severa, nutre um certo carinho por suas meninas. Isso, no entanto, não evita a existência de um esquema de pagamento e cobrança que praticamente impede as funcionárias de abandonar a casa.
Algumas delas, como Clotilde (Celine Sallette) e Cheerful Julie (a italiana Jasmine Trinca), possuem clientes regulares – o que traz certa tranquilidade, mas não garante a independência, muito menos a liberdade. Já a chegada da novata Pauline (Iliana Zabeth) faz lembrar a entrada de Bruna Surfistinha, no filme homônimo, na casa da cafetina vivida por Drica Moraes. Não há glamour na profissão - esqueça Julia Roberts em Uma linda mulher. O prostíbulo, como qualquer empreendimento, é tratado de forma comercial, visando lucros, e cada garota aprende suas obrigações e deveres.
A personagem mais marcante, no entanto, é Madeleine (a estreante Alice Barnole) cujo rosto foi desfigurado por um cliente psicopata . Por conta de suas longas cicatrizes nas bochechas, é chamada de A Mulher que Ri – alusão ao romance de Victor Hugo, O homem que ri. Essas marcas que causam repúdio na maioria dos clientes – e poderiam impedi-la de exercer sua função, transformando-a na empregada das colegas – são objeto de fascínio de um homem que paga apenas para conversar com ela, interpretado pelo cineasta Xavier Beauvois. Madeleine é uma figura que seria patética, mas sua doçura e ingenuidade a transformam numa espécie de heroína involuntária do submundo.
Como mostra a história, essas personagens não foram forçadas a essa profissão. Foi, para a maioria delas, uma escolha deliberada para não ser uma costureira, uma camponesa ou algo assim, sabendo dos riscos e obrigações. Se por um lado, na cama elas são obrigadas a fingir prazer, na sala comunal com as colegas e clientes, antes de subir para o quarto, o prazer e a diversão são verdadeiros. Os clientes, enquanto personagens, não chegam a ser tão marcantes quanto as figuras femininas – o que até faz sentido dentro do filme, afinal, o show é delas. Um deles, por exemplo, se chama Gustave, uma possível alusão ao pintor francês Gustave Courbet, autor do quadro A origem do mundo (1866), um close de uma genitália feminina que causou enorme escândalo em sua época. O personagem, no entanto, não é exatamente o pintor, que morreu em 1877.
Não apenas a cena final faz uma ponte entre passado e presente. A trilha sonora – que inclui Nights in White satin, na versão do Moody Blues, e Bad girls, cantada por Lee Moses – é responsável por alguns dos momentos mais bonitos e delicados de um filme que parece, muitas vezes, envolvido numa bruma onírica, por conta da fotografia competente assinada pela canadense Josée Deshaies (A questão humana).
Com L’Apollonide – Os amores da casa de tolerância, Bonello exibe uma competência e sensibilidade que até então faltavam em seu trabalho. Artisticamente, o filme é do mais alto calibre - com sua beleza visual intoxicante e trama absorvente -, ideologicamente, também. Falando do passado, o diretor levanta questionamentos e discussões sobre o presente. O belo final é a prova de que, como dizia o personagem do romance e do filme O Leopardo, “as coisas devem mudar para que continuem as mesmas”.