A releitura do passado pelo presente pode ser como pequenos pedaços de cristal refletindo e refratando a luz da história que já passou. O documentário Memórias de Xangai, de Jia Zhang Ke, funciona assim. Capturando pequenos flashes da história, por meio de histórias pessoais, e montando um painel histórico da cidade. As narrativas em primeira pessoa trazem consigo o filtro de cada um, a memória – e nesse momento o cineasta mostra o que investiga: a relação entre o tempo e o espaço.
O espaço é imutável: Xangai. O tempo é o turbilhão que transforma – para o bem e para o mal – a vida das pessoas, e consequentemente a cidade. As histórias que emergem transitam entre a graça, a leveza e o peso e a dor. Uma das depoentes conta que só conhece o pai por meio de fotografias. Ele foi executado poucos dias antes de ela nascer. Outro se lembra de sua mãe, um atriz famosa que acabou se matando.
Por esse mosaico, circula uma jovem (a atriz Zhao Tao) sabe-se lá em busca de quê. Talvez em busca da própria cidade. Sua jornada, às vezes vagando quase como um zumbi, lembra personagens de outro filme do cineasta: Em busca da vida, que, também tinha ao centro um lugar que estava prestes a ser inundado.
Jia lança o seu olhar sobre Xangai – também sua terra natal – com curiosidade e carinho. A montagem estabelece um diálogo entre as pessoas e a cidade, criando uma dinâmica entre o tempo e o espaço. Muitas vezes, o cinema é o mediador dessa relação, com imagens de filmes antigos, outros nem tanto. O cineasta Hou Hsiao-hsien, por exemplo, conta de quando foi pela primeira vez à cidade em busca de locações para o seu filme Flores de Xangai (1998) – para ele, a sensação de descoberta e o arrebatamento são inigualáveis.
Política e cultura se cruzam ao longo do filme, quando são lembrados os anos de Mao e a ascensão do comunismo ao poder. É desse período que vêm as histórias mais impressionantes – como a da mulher que perdeu o pai antes de nascer. E também a de Zhu Qiansheng, que serviu de guia ao cineasta italiano Michelangelo Antonioni quando ele fez seu documentário, China, em 1972, e caiu em desgraça sem nunca ter assistido ao filme.
O passado e o presente, o tradicional e o ultracontemporâneo coexistem de forma evidente em Xangai. E Jia parece ser o cineasta mais apto a captar esse embate que se faz presente logo na primeira cena, quando um leão de bronze é lustrado. A figura antiga no meio da modernidade resume bem o espírito do filme.