Ferrugem e Osso poderia ser um dramalhão, um filme sobre como a força do amor ajuda a superar as adversidades, ou qualquer outra bobagem saída, por exemplo, de um livro de Nicolas Sparks. Mas o roteiro deste longa é baseado em contos do canadense Craig Davidson, que, em sua obra, está mais interessado nas crueldades da vida e como as pessoas lidam com isso – e o amor não é, necessariamente, a resposta. No filme, o diretor francês Jacques Audiard (O profeta) – que assina o roteiro com Thomas Bidegain, seu parceiro de outros trabalhos – sagazmente crê na força transformadora do amor, mas não de forma romântica e melosa.
Ao contrário do livro, no qual os contos são independentes, Audiard cruza organicamente algumas histórias e personagens. A maior transformação é quanto ao gênero do protagonista. Na história escrita por Davidson, trata-se de um homem. Aqui, a trama é protagonizada por uma mulher, Stéphanie, interpretada por Marion Cotillard (Piaf – Um hino ao amor, O Cavaleiro das Trevas ressurge), que se envolve amorosamente com um personagem de outro conto – no texto original, eles nem se cruzam. Trata-se de Alain (Matthias Schoenaerts), boxeador desempregado que precisa cuidar do filho de 5 anos (Armand Verdure).
Stéphanie e Alain são duas almas desesperadas que se encontram por acaso. Quando se veem pela primeira vez, ele é segurança numa boate, onde ela dança alegremente – é um espírito livre. No próximo encontro, a vida da moça terá passado por uma drástica mudança depois de um acidente num aquário de baleias onde trabalha. Quando, por acaso, ela encontra o telefone dele, pensa que o lutador poderá ser uma companhia.
Uma das coisas mais impressionantes em Ferrugem e Osso são os efeitos que apagam as pernas de Marion, a partir dos joelhos. As cenas em que a personagem aparece amputada – em algumas, em roupa de banho ou até nua – servem para mostrar como efeitos especiais podem ter uma função além de criar monstros ou ajudar super-heróis. A orca que mutilou a protagonista, no entanto, não é uma baleia má, é apenas um animal seguindo os seus instintos. Dessa forma, dentro do filme, o animal serve tanto como um signo quanto catalisador. Ao contrário dela, Stéphanie e Ali são duas pessoas tentando domar seus instintos. É um processo em buscam se reumanizar, reencontrar a dignidade perdida.
Esse processo, no entanto, dá-se por caminhos paradoxais. Ali se envolve em lutas de rua clandestinas, das quais sai coberto de sangue, mas com algum dinheiro. Stéphanie começa a acompanhar de longe, de dentro do carro, até que se torna uma espécie de empresária de Ali.
A francesa Marion Cotillard não é apenas uma atriz – é uma força da natureza, é capaz de qualquer coisa –, seja numa biografia (Piaf – Um hino ao amor), num blockbuster (o mais recente Batman) ou num filme de arte. Remover as pernas digitalmente ajuda, é claro, na composição da personagem, mas é a atriz quem dimensiona o significado disso em sua interpretação, complementada pelo belga Schoenaerts.
Por fim, a direção certeira de Audiard encontra o tom preciso entre o sentimentalismo e o drama áspero sobre duas pessoas em busca da superação de suas perdas. Ainda que seus temas tenham sido abordados antes inúmeras vezes – boxe é um assunto tão caro a Hollywood que se torna uma metáfora evidente da luta pela vida -, Ferrugem e Osso alcança uma originalidade peculiar pelo olhar que lança sobre essas pessoas.