Com seu título tirado de um poema de Walt Whitman, do celebrado livro Folhas na Relva, Corpo Elétrico segue o fluxo dos desejos de Elias (Kelner Macedo), um designer gay, assistente numa confecção do Bom Retiro, em São Paulo. Inserido no contexto da capital do centro velho, proletário, o filme incorpora também essa porção da cidade em sua narrativa, retratando de forma orgânica uma parcela do universo da classe média baixa que trabalha nas confecções ao longo da rua José Paulino.
Longa de estreia do diretor Marcelo Caetano, o filme se detém em temas como a diversidade sexual, preocupando-se com um tom libertário, investindo não só na esfera íntima de seus personagens como nas pressões vividas pela necessidade do trabalho. O roteiro, de autoria do diretor, ao lado de Gabriel Domingues e colaboração inicial de Hilton Lacerda, foi sendo criado de maneira fluida, com a colaboração dos atores, a partir de situações que improvisavam numa sala de ensaios. O próprio Marcelo Caetano encarregou-se da preparação dos atores, para manter o frescor das interpretações e também uma esfera de intimidade no set.
De todo modo, Corpo Elétrico vai bem longe nessa problematização não só do amor romântico, como sustenta o diretor, como da exploração do corpo no trabalho e da resistência representada pela busca do lazer e do prazer, onde está sua catarse. Desse modo, acompanha-se as interações de Elias não só com seus parceiros amorosos como com seus colegas operários, participando de noitadas de cerveja e música popular que retratam muito naturalmente o modo de vida desses personagens, alguns heterossexuais, o que mostra que o filme não quer falar de uma coisa só.
Na verdade, a homossexualidade de alguns entra naturalmente no cotidiano de todos, como na vida mesmo. E o filme dedica um capítulo particular a uma animada trupe de travestis, lideradas por Marcia Pantera, que não destoa de uma narrativa que quer retratar as diversas formas de expressar e empunhar o próprio corpo.
Ambientado entre o Bom Retiro, Itaquera, Brasilândia e uma passagem por Itanhaém, Corpo Elétrico dialoga vivamente com um certo cinema paulista, de Paulo Sérgio Person (São Paulo S/A) a Carlos Reichenbach (Anjos do Arrabalde, Garotas do ABC), que toma o pulso de um certo modo de ser em determinadas geografias, sem nunca perder de vista o seu acento contemporâneo. Confirma-se, assim, o talento do estreante em longas que já havia anunciado sua originalidade e vigor em curtas premiados, como Bailão.
Duas belas sequências ficam na memória: uma cena em que os colegas da confecção andam pela rua, entrando e saindo de quadro, com uma naturalidade que não deve enganar ninguém – a cena foi muito ensaiada e exigiu nada menos de 23 takes para chegar à sua adorável configuração final; e uma sequência que mostra diversos guarda-chuvas coloridos no centro, num fim de dia, fazendo uma ponte com outras imagens históricas do cinema, como a pioneira saída da fábrica dos irmãos Lumière num outro contexto.
Corpo Elétrico foi exibido em avant première no Festival de Roterdã e passou em festivais em diversos outros países, como Guadalajara, onde obteve o prêmio Maguey, Hong Kong, Cracóvia, Flare (Londres), Outfest (Los Angeles).