20/03/2025
Suspense Drama

O sacrifício do cervo sagrado

Cardiologista renomado, Steven Murphy aparentemente tem a vida e a família perfeitas, com a mulher, Anna, uma oftalmologista, e os filhos Kim e Bob. Ao mesmo tempo, o médico mantém um relacionamento estranho com um adolescente, Martin - que está ligado a uma história do passado e atuará para desencadear o inferno na vida de Steven.

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Um dos diretores gregos mais prestigiados no cenário internacional, Yorgos Lanthimos oferece, em O sacrifício do cervo sagrado, seu filme mais duro. Com um rigor implacável, ele compõe o drama da família do cirurgião cardiovascular Steven Murphy (Colin Farrell) ao ser confrontada com a expiação de um erro do patriarca.
 
Premiado em Cannes 2017, o roteiro, como nos filmes anteriores do diretor – Dente Canino (2009), Alpes (2011) e O Lagosta (2015) -, é assinado a quatro mãos por Lanthimos e Efthymis Filippou e, ainda mais do que eles, impregnado de tragédia grega. No caso, a de Ifigênia, de Eurípides, cujo tema explica o título do filme.
 
A ideia de sacrifício vai se evidenciando nos motivos do relacionamento entre o médico e um adolescente de 16 anos, Martin (Barry Keoghan). Os dois se encontram numa lanchonete e Steven costuma dar-lhe presentes. A sugestão de uma relação amorosa é afastada quando se esboça a possível culpa de Steven na morte do pai do garoto, alguns anos atrás.
 
A princípio, Steven acolhe o rapaz, inclusive em sua casa, junto a sua mulher, Anna (Nicole Kidman), uma oftalmologista, e seus filhos, Kim (Raffey Cassidy) e Bob (Sunny Suljic).
 
Martin dá sinais de que deseja algo mais, com sua insistência em levar o médico para jantar com sua mãe (Alicia Silverstone) em sua casa. Depois de uma noite com toques cômicos – em que o médico é levado a assistir com eles ao filme Feitiço do Tempo (93) -, a viúva insinua-se afoitamente junto a Steven.
 
Na cabeça de Martin, trata-se de um jogo de substituições, como da figura de seu pai, que, não sendo aceito em seus termos, leva-o a transformar-se num perturbador agente de vingança. Como sempre nos filmes de Lanthimos, introduz-se um elemento fantástico, aqui a misteriosa doença que acomete os dois filhos do casal de médicos, que perdem a capacidade de andar, além do apetite, sem que nenhuma causa física possa ser diagnosticada.
 
No drama Ifigênia, Agamenon havia causado a ira da deusa Artêmis ao caçar um cervo em seus bosques sagrados. Por isso, lhe foi exigido que sacrificasse a própria filha, Ifigênia. Um sacrifício similar é aqui imposto ao médico por Martin, como uma espécie de mórbida compensação pelo erro que custou a vida do pai.
A maneira como este duelo entre os dois é encenado traduz a grande qualidade do diretor Lanthimos, seu rigor na criação de uma atmosfera em que cada detalhe soma mais um elemento a favor do funcionamento de um mecanismo inexorável.
 
Trabalhando pela segunda vez com o diretor grego (a primeira vez, em A Lagosta), Colin Farrell é o retrato de um homem habituado ao controle que vai perdendo a razão diante da determinada irracionalidade do garoto – que parece exercer um poder maligno sobre seus filhos.
 
A Nicole Kidman cabe o papel de uma mulher gélida, que se submete a rotinas, inclusive sexuais, um tanto doentias com este marido, saindo deste papel apenas quando teme pela vida dos filhos.
 
De todo modo, o filme constitui uma crônica de horror sobre a normalidade burguesa e suas aparências, dependendo de uma série de rituais hipócritas para manter-se à tona. Confrontada pela culpa, essa normalidade não encontra a menor chance de um enfrentamento contra a complexidade e irracionalidade do mundo.
 
Apesar de suas qualidades, impossível não pensar o quanto eram mais sugestivos os filmes anteriores do diretor enquanto fábulas distópicas. Aparentado a um universo fatalista, como do austríaco Michael Haneke, o ambiente de O sacrifício do cervo sagrado parece não despertar tantas possibilidades de releitura.
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