08/09/2024
Drama

Quase memória

Num casarão deserto, o velho Carlos recebe a visita de um outro homem. Conversando, os dois descobrem que são a mesma pessoa, em duas idades diferentes, confrontando as próprias lembranças.

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Treze anos depois de seu último filme, O Veneno da Madrugada (2005), baseado em Gabriel García Márquez,o veterano cineasta Ruy Guerra, 86 anos, retorna com outra adaptação literária.
 
Quase Memória é o resultado de um esforço de 25 anos, em que o emblemático diretor moçambicano/brasileiro não desistiu de adaptar o livro homônimo do escritor Carlos Heitor Cony. Por sorte, a persistência foi mútua – Cony também renovou, sistematicamente, a cessão dos direitos de sua história. Infelizmente, o tempo dilatado, exigido para levantar o orçamento, acabou não permitindo que Cony, afetado por problemas de saúde, acompanhasse a reta final (ele morreu em 5 de janeiro de 2018).
 
É sempre com a sua marca de liberdade que Guerra se lança à sua versão da história, começando por afastar-se do livro ao criar dois protagonistas que, no caso, são o mesmo homem, Carlos, em idades diferentes, num diálogo consigo mesmo – interpretados por Tony Ramos e Charles Fricks (no livro, o protagonista é único).  O recurso, por si só, insere uma nota teatral, no melhor sentido, num filme que valoriza a palavra e a memória – que, no caso, está escapando ao Carlos maduro.
 
Diante de uma outra encarnação de si mesmos, os dois Carlos debatem suas diferentes lembranças de seu pai, o jornalista Ernesto (João Miguel) e as muitas escolhas de uma vida aventurosa, permeadas pelas incursões de personagens como o Ministro (Flávio Bauraqui) e o capitão Giordano (Antonio Pedro). Esse confronto de memórias conflitantes coloca em cena as escolhas do próprio Carlos, cuja versão mais jovem tenta às vezes interrogar seu eu futuro, com pouco sucesso, diante da amnésia real ou declarada do outro.
 
No meio desse embate interior, tornado palpável pelo corpo a corpo entre dois atores extraordinários, Ruy recorre a um recurso metalinguístico ao permitir que os dois Carlos procurem decifrar como foi possível o seu improvável encontro – imaginando que são criações de um possível narrador/criador que os esteja manipulando, ao mesmo tempo negando-lhes e fornecendo-lhes pistas, eventualmente falsas.
 
É de se lamentar, no entanto, a opacidade da única personagem feminina de algum relevo, Maria (Mariana Ximenes), primeira mulher de Ernesto e mãe de Carlos – a quem é dado pouco a dizer e a fazer, transformando-se em pouco mais do que uma personagem decorativa em cena. Há uma brevíssima aparição da segunda esposa de Ernesto, Sônia (Ana Kutner), ainda mais fugaz.
 
O próprio diretor reconheceu que limitações de orçamento o levaram a reprogramar sua produção, reduzindo, por exemplo, seu pretendido retrato do Rio antigo, numa história que, no livro, aborda o jornalismo do período. De se lamentar que Guerra não tenha podido realizar a contento suas sempre altas ambições. De todo modo, Quase Memória é um filme digno, qualificado, que combina inteligência, vigor e poesia com o máximo empenho – e a fotografia de Pablo Baião é uma de suas muitas notas altas, configurando de maneira precisa e intensa a atmosfera no limite da realidade em que se debatem os dois homens.
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