Premiado em festivais como Havana e Rio em 2017, Praça Paris, de Lúcia Murat, recoloca na obra da diretora o choque social que ela abordou em filmes como Quase dois irmãos (2004). Atualizando o registro de um país em que a situação social e política se deteriora a olhos vistos, Lúcia, associada a um roteirista estreante, o jovem escritor Raphael Montes, desenha essa crise no Rio, confrontando duas mulheres de condições sociais, etnia e até nacionalidades diferentes.
A própria localização da história é emblemática, o Centro de Terapia da UERJ, na confluência do morro da Providência, a favela mais antiga do Rio, e do lendário estádio do Maracanã. É nessa geografia múltipla e conturbada que se cruzam os destinos de Glória (Grace Passô), ascensorista da universidade, e Camila (Joana de Verona), uma psicóloga portuguesa radicada no Brasil que a atende no Centro.
A história de Glória reúne elementos desagregadores, especialmente uma relação complexa com o irmão presidiário, Jonas (Alex Brasil), impregnada de culpa em torno de um pai abusivo e uma mãe ausente. É evidente que Camila, vinda de um contexto e um país completamente diferentes, não está aparelhada para assimilar essa carga dramática que Glória carrega, como símbolo de uma classe social e um país em transe.
Na aproximação das duas, Camila, que tem suas próprias fragilidades pessoais, passa a ser dominada pelo medo, desencadeado por reações de sua paciente que ela não está preparada para administrar, num contexto em que o fracasso das UPPs precipita um agravamento da situação no Rio.
O filme desenha de forma convincente essa relação complicada entre os dois irmãos, que tem um componente tóxico, impedindo Glória de manter outros relacionamentos, inclusive com a própria terapeuta e também com um interesse amoroso, Samuel (Digão Ribeiro).
A personagem da psicóloga, no entanto, é menos desenvolvida, entremeada de mais lacunas do que o equilíbrio da história solicita. De todo modo, o próprio detalhe de ela ser portuguesa arma, de forma feliz, uma metáfora que remete à colonização, à incapacidade de quem está numa posição superior de compreender o oprimido, colocando-o à distância, estigmatizado em sua carência e rebeldia diante de expectativas que vêm de outra realidade, não podendo simplesmente ser decalcadas sem adaptações. Evidentemente, há uma bagagem emocional da própria Camila que vem à tona numa situação de conflito com a paciente mas não é sustentada dramaticamente com firmeza, diluindo um pouco a potência do que se viu até então.
A história também coloca em evidência como a própria metodologia da ciência – no caso, a psicologia – entra num terreno minado como a violência urbana contemporânea com processos e técnicas incapazes de dar conta do turbilhão que tem diante de si. Não se esperaria, certamente, que a psicóloga resolvesse um dilema do tamanho da vida de Glória, interpretada com intensidade precisa por Grace Passô, atriz teatral e dramaturga que faz aqui sua primeira protagonista, um trabalho justamente premiado no Festival do Rio 2017.