Hereditário é um filme que parece não se orgulhar de suas referências e, discretamente, as esconde. Aqui, elas vão desde Medeia e Ingmar Bergman até Antricristo, de Lars von Trier, e O sexto sentido, de M. N. Shyamalan – e para os mais atrevidos, pode-se dizer que o longa passa até pelo episódio dos Espíritos Zombeiteiros, do televisivo mexicano Chaves. Ari Aster, roteirista e diretor aqui, joga um manto mais pop sobre suas inspirações.
Toni Collette, como em O sexto sentido, continua se envolvendo com gente morta e pagando um preço alto por isso. A atriz interpreta Annie Graham, uma miniaturista, que está enterrando sua mãe. Aos poucos, descobrimos que a relação entre as duas sempre foi tensa, ficaram tempos sem se falar, e se reencontraram agora, nos últimos anos de vida da matriarca. Casada com Steve (Gabriel Byrne), a protagonista tem dois filhos: o adolescente Peter (Alex Wolff) e a pré-adolescente Charlie (Milly Shapiro), cujas feições sérias e melancólicas a fazem parecer muito mais velha do que é.
Annie tem dificuldades de lidar com o luto e procura um grupo de apoio. Num verdadeiro desabafo em sua primeira reunião, descrevendo todos os problemas dos pais, do irmão e a relação doentia entre eles, faz a família parecer saída de um filme de Bergman. Antes que ela se recupere dessa perda, uma nova tragédia recai sobre ela. Aster constrói esse momento de maneira lenta e precisa, sem se afobar nem antecipar nada. Por isso, quando o ato se conclui dentro do filme é impressionante.
A maternidade emerge de maneira sutil no filme, mas incisiva. Annie tem uma questão mal resolvida do passado com o filho mais velho e nunca soube direito como lidar com a caçula. A própria protagonista também enfrentou sérios problemas com a mãe controladora. É um tema que nunca abandona o filme: o papel da mulher na sociedade e a maternidade como uma imposição e não uma escolha. As miniaturas que a protagonista faz envolvendo sua família e suas tragédias aparecem como sua tentativa de controlar o incontrolável – ou também de o compreender e processar.
De certa forma,as personagens femininas fogem completamente dos padrões que se esperam delas – especialmente as figuras maternas. Tanto Annie quanto sua mãe raramente são protetoras. Esse papel cabe ao personagem de Byrne, o pai, que toma as rédeas dos cuidados dos filhos quando sua mulher entra numa espiral de insanidade. É ela que está sendo irracional ou o mundo em que vive e as pressões a que este a submete? Há uma questão social sendo investigada em Hereditário, e é o que os melhores filmes do gênero são capazes de fazer, desde clássicos como O iluminado e O exorcista (duas outras influências) como o nacional As boas maneiras, o australiano O babadook e o iraniano Sob a sombra. Em comum, todos trazem figuras femininas em situações de perigo sobrenatural com as quais elas mesmas precisam duelar (embora em O exorcista, por motivos óbvios, mãe e filha precisam da ajuda de um padre).
Talvez esses terrores sejam capazes de figurar uma situação do presente – que data da revolução sexual e da segunda onda do feminismo (ambas dos anos de 1960) –, de como a mulher precisa se dividir em papéis múltiplos e sair-se bem em todos – mãe, esposa, dona-de-casa, profissional... O terror parecer emergir como o gênero que mais bem capta essa demanda e a luta feminina para se livrar dessas pressões e ser exatamente (ou apenas) o que cada mulher quer.
Aster é um diretor e roteirista dado à mansidão. Não tem pressa em colocar elementos em cena, toma todo o tempo do mundo para construir o momento – especialmente os de horror – por isso seu filme é tenso. Os fantasmas custam a aparecer e,quando o fazem, é, num primeiro momento, de maneira discreta, quase imperceptível. Mas Hereditário é construído num crescendo, chegando ao ponto em que o diretor perde o controle sobre toda a sutileza que usou até então.
É uma pena que, na última meia hora, o longa se deixe levar por sustos baratos e uma fantasia descabida aqui, uma vez que andava seguramente num registro realista. Ao abraçar sem pudor o sobrenatural, joga fora a tensão e a dubiedade que levou 90 minutos construindo. Para um filme de mais de duas horas que se explica tanto na reta final, Hereditário ainda não faz muito sentido, especialmente porque sua resolução é tão tola quanto frustrante. Quando fica claro que algo de sobrenatural ameaça a família, o longa se torna uma sucessão de sustos e nada mais.
Ainda assim, Aster tem dois grandes trunfos em suas mãos. O primeiro é Collette, uma grande atriz, cujos filmes nem sempre estão à altura do seu talento. Aqui pelo menos se faz justiça a ela. Sua personagem, a cada cena mais emocionalmente destruída, é algo raro no cinema de gênero que, muitas vezes, deixa-se levar por fórmulas baratas e personagens prontos. O horror estampado na cara de Annie – ou seus berros guturais numa cena-chave – não será facilmente esquecido. O outro ótimo elemento do filme é a fotografia soturna de Pawel Pogorzelski (Água para elefantes). E há também a excelente Ann Dowd em cena, a Tia Lydia, de O conto da aia, cuja mera presença remete à vizinha de O bebê de Rosemary.
O filme de Roman Polanski, aliás, é uma força aqui. Na medida em que Hereditário avança, estaria Annie enlouquecendo ou coberta de razão e algo satânico realmente acontece em seu quintal? Não apenas ela, mas as personagens perdem a cabeça mais cedo ou mais tarde. Aster é talentoso e corajoso – suas opções no roteiro nem sempre são as mais óbvias – mas que parece deixar-se levar demais pelo seu excesso de influências. Os dez minutos finais parecem saídos de uma versão de Anticristo feita para multiplexes – e ele conta com o fato de que esse filme não passou nesse tipo de cinema, e boa parte do seu público nem deve ter ouvido falar do longa de von Trier. Por isso, muita coisa aparentará ser novidade. Mas não é.