Dissecando a instabilidade da democracia brasileira - que, depois de 21 anos de ditadura (1964-1985), parecia ter sido definitivamente instalada no País há 35 anos -, a diretora Petra Costa costura registro histórico e partes relevantes de sua própria biografia para compor um dos documentários mais importantes dos últimos tempos - e que acaba de ser indicado para concorrer ao Oscar 2020 da categoria.
Em sua alentada narração, Petra discorre sobre processos formadores da identidade do país, desde mal-enfrentados fatos remotos, como a malfadada escravidão, chegando ao movimento pelas Diretas (que ocorre no ano em que ela nasceu, 1984) e ao passado de sua família, que ilustra, em parte, a dicotomia da polarização que, neste momento, rasga o País mais do que nunca. Filha de pais militantes políticos, Manoel Costa e Marília Andrade, Petra deve seu nome a uma homenagem ao dirigente comunista Pedro Pomar, assassinado em 1976. Petra é também neta de Gabriel Donato de Andrade, um dos fundadores da construtora Andrade Gutierrez e apoiador do golpe de 1964.
Arriscando-se em análise mais complexa, Petra focaliza os presidentes petistas, Lula e Dilma Rousseff, analisando trajetórias que desenvolveram políticas sociais que reduziram a histórica desigualdade do País e também alianças questionáveis em torno da manutenção da própria governabilidade. Passa-se pelos protestos de 2013 e os efeitos devastadores da operação Lava-Jato para minar a credibilidade de governos que, até então, desfrutavam de índices inéditos de popularidade. Com a decisiva participação da grande mídia, o País mergulha numa grande divisão que cria o ambiente propício para o golpe parlamentar de 2016, orquestrado por Eduardo Cunha. “Eu não governei em 2015”, desabafa Dilma numa fala, referindo-se ao boicote implacável movido pelo então presidente da Câmara para paralisar seu segundo mandato.
Reunindo entrevistas - de Lula e Dilma até Jair Bolsonaro -, além de materiais de arquivo que ilustram a incrível sucessão de fatos que culminaram na deposição de Dilma, Petra consegue criar uma linha narrativa sólida sobre o enorme abalo sofrido pela democracia no Brasil com um impeachment duvidoso e a criminalização da política e dos políticos - promovida pela aliança mídia/Lava-Jato que levou ao vazio que conduziu a extrema-direita ao governo federal em 2018.
Eventualmente essa mesma narração, criada tendo em vista um público internacional - a produção do filme é da Netflix -, poderá parecer redundante a parte do público brasileiro, já familiarizado com rostos e fatos analisados pelo documentário. É inegável, no entanto, o poder organizativo dessa mesma narração diante de um turbilhão que, uma vez desencadeado, não parece ter tido descanso, sacudindo o País impiedosamente num rumo desastroso. Mais do que tudo, o sentimento de angústia da diretora pode ser compartilhado por todo e qualquer espectador com um mínimo de sentimento democrático.