A Infância de Ivan é, portanto, a primeira parada da extraordinária jornada do diretor pelo cinema, uma viagem que invoca a sedução dos sentidos de encantamento e sobressalto, vinculando de maneira única materialidade e transcendência, humanismo e poesia.
No meio da II Guerra, o garoto Ivan, de 12 anos, órfão, liga-se a um grupo de oficiais do Exército Vermelho, que transformam em sua família substituta. Ao mesmo tempo, realiza missões de rastreamento, procurando as linhas das tropas nazistas, o que o coloca permanentemente em perigo.
- Por Neusa Barbosa
- 13/07/2020
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Adaptando livremente um conto do escritor Vladimir Bogomolov, o cineasta russo Andrei Tarkovsky iniciou sua brilhante trajetória com A Infância de Ivan (1962). Embora não se tratasse de sua estreia - ele havia realizado médias e um curta antes -, foi seu primeiro longa e aquele que venceu o Leão de Ouro em Veneza e o projetou internacionalmente.
É neste trabalho que começa a soltar-se a poderosa imaginação do artista, criando imagens inesquecíveis para delinear a vida de um menino, Ivan (Nikolay Burlyaev), que tem apenas 12 anos mas já perdeu o direito a uma infância, por conta da II Guerra. A perda de sua família o obrigou a crescer repentinamente. Corajoso, Ivan realiza missões de espionagem de alto risco para ajudar o exército soviético, enfrentando uma invasão nazista que parecia irresistível àquela altura.
O contraponto à dura realidade da URSS naqueles dias são os sonhos do menino. Em seu sono sempre agitado, ele se vê voando, andando com a mãe (Irina Tarkovskaya), em cenários míticos, de grande beleza. Uma dessas cenas magníficas mostra Ivan e uma menina numa carroça carregada de maçãs, que, à medida que caem pelo caminho, são comidas por cavalos. Mas é da consistência do retrato humano do menino e dos oficiais com quem convive que o filme extrai sua matéria mais dura.
O vínculo formado por Ivan com o capitão Kholin (Valentin Zubkov) e o soldado Katasonov (Stepan Krylov) é semelhante ao de uma família substituta, tornando-se mais peculiar na medida em que o menino recusa ser tratado como criança por quem quer que seja - como seu novo conhecido, o jovem tenente Galtsev (Evgeny Zharikov). Uma das necessidades criadas pela guerra em Ivan é a autonomia. Ninguém exceto ele sabe como pôde sobreviver depois de perder os pais, de modo que sente já ter provado ao mundo que é adulto. Ele quer, portanto, ser tratado como um dos rapazes, sentindo-se importante na medida em que, por ser pequeno, consegue passar despercebido em suas arriscadas missões, sondando a localização das forças nazistas. Ele se sente um da tropa, como se fosse um soldado também.
Há um agudo sentido de retrato da personalidade masculina neste grupo. A rivalidade que se estabelece entre o tenente Galtsev e o capitão Kholin produz algumas das fricções mais claras de uma luta por protagonismo - não só militarmente mas sobretudo na disputa pelas atenções da jovem médica Masha (Valentina Malyavina).
A ênfase nesta masculinidade à flor da pele é reforçada inclusive pela escassa presença feminina na tela - além de Masha, só será vista a mãe de Ivan, em cenas idílicas, de sonho e flashback, evocando todo um mundo de delicadeza e afeto perdidos, mas de algum modo sobrevivendo no fundo da mente do menino.
Neste primeiro longa, Tarkovsky já estabelece uma assinatura, compondo uma narrativa calcada, de um lado, no realismo da guerra - chegando, não raro, ao limite da crueza, não só nas batalhas encenadas como no uso de imagens reais da Berlim destruída em 1945 no final - sem perder de vista, de tempos em tempos, de notas de uma atmosfera por vezes expressionista, como na sequência em que Ivan encara seus traumas, rostos no escuro, expressando simbologias que se tornariam marcas registradas do estilo do diretor.
Essencial para este resultado excepcionalmente preciso é a parceria do diretor de fotografia Vadim Yusov, que realiza um trabalho magnífico, de correspondência estreita ao pensamento do diretor. A luz de cada cena vem de onde menos se espera, criando um efeito fantasmagórico, onírico, mas muito belo, consolidando a transcendência que é a marca de todo o trabalho de Tarkovsky.