Vencedor do Oscar de roteiro original, Bela Vingança, estreia em longas da diretora, atriz e roteirista inglesa Emerald Fennell, é o tipo da história que não busca proporcionar conforto ao abordar, por um viés frequentemente provocativo, aquilo que se chama de “cultura do estupro”. Quem não entender do que se trata o termo, tem aqui um filme que dá uma verdadeira aula.
Interpretada com a habitual competência pela atriz Carey Mulligan, a protagonista é Cassie, uma jovem de 30 anos que mora com os pais (Jennifer Coolidge e Clancy Brown) e trabalha num café durante o dia. À noite, ela se transforma, deixando de lado a aparência quase infantil de boa moça, envergando um figurino sexy e maquiagem pesada e partindo para bares repletos de homens. Ninguém se engane sobre suas intenções - Cassie está numa missão.
Seu alvo: rapazes que não podem ver uma mulher aparentar fragilidade e bebedeira sem partirem para cima dela, exercendo um muito praticado comportamento de predadores. Colocando em ação uma verdadeira performance para atraí-los, Cassie em geral acaba a noite com algum deles - que nunca esquecerá o quanto seu plano deu profundamente errado.
Só depois de algumas investidas é que se permite adentrar um pouco mais na psicologia desta jovem mulher que tornou o disfarce das próprias emoções um modo de vida. Por trás disso, há um trauma e uma obsessão: vingar a tragédia que marcou a vida de sua melhor amiga, Nina Fisher, que fez Cassie abandonar a escola de medicina que as duas cursavam anos atrás.
Levando Cassie a reencontrar antigos colegas de faculdade, permite-se desenterrar nacos desse passado traumático, não elegendo, aliás, somente homens como cúmplices do episódio que destruiu Nina. Uma boa sacada do roteiro é delimitar a teia de relacionamentos e omissões que permitiu que histórias lamentáveis como essa acontecessem - e continuarem a acontecer, porque, afinal, jovens rapazes envolvidos nesses comportamentos “têm o futuro pela frente”, o que serve como desculpa para a impunidade de seus abusos sexuais.
O título brasileiro do filme, que entrega de bate-pronto do que trata a história, deixa escapar a premissa do original, Promising Young Woman, um contraponto ao argumento que permite a impunidade de tantos abusadores. É esse título que lembra que as vítimas femininas são também jovens com futuro pela frente - isso quando essa possibilidade não lhes foi cortada.
Cassie, aliás, não se sente menos culpada de não ter podido proteger a amiga. Por isso, sua personagem é marcada tanto pela raiva quanto por uma dor que não tem tamanho e que ela só muito raramente desabafa - como numa rápida visita à mãe de Nina.
É fato que uma atriz do quilate de Carey Mulligan acrescentou à personagem nuances que a tornam o centro nevrálgico de um filme cujas partes nem sempre se ajustam com equilíbrio. Há um tom exacerbado em diversos momentos, eventualmente até humor negro, numa história que converge para uma sequência atordoante, antes do final, que deixará muitos insatisfeitos - eu, inclusive.
De todo modo, há que se elogiar a jovem diretora por colocar o dedo numa ferida sempre escondida, sempre varrida para baixo do tapete, cujo preço historicamente apenas as mulheres têm tido que pagar. Mas a vingança, como se sabe, envenena também a vida do/a vingador/a.