A rainha Margot, de Patrice Chéreau, é um desses filmes que fazem - ou têm que fazer - parte do DNA de todo cinéfilo que se preze. O encontro ou reencontro com essa obra, premiada mas nem sempre bem compreendida na época de seu lançamento, em 1994, ainda mais na versão mais longa (159 min), como queria o diretor, e restaurada em 4K, é, portanto, a oportunidade de um banquete audiovisual e dramatúrgico.
Partindo do romance de Alexandre Dumas, Chéreau costura a carne, sangue e emoções fortes o sentido da História e do espetáculo, diretor teatral experiente que era. Sua perícia está, em primeiro lugar, nessa capacidade exemplar de criar urgência em acontecimentos ocorridos mais de quatro séculos antes, na Europa, de tal maneira que o espectador se sente capturado num vendaval, como se ele mesmo fosse tragado por eles. Os personagens são colocados em confronto de maneira que se pode sentir sua pele, sua pulsação, como se fossem nossos contemporâneos, apesar dos cenários e figurinos que os localizam em sua própria época. Chéreau produz a temperatura certa para traduzir a noção de que a humanidade, no fundo, é uma só e a mesma, seja qual for o tempo em que viver, não conseguindo transcender algumas de suas mais básicas emoções e instintos.
O ano é 1572. O acontecimento deflagrador, o casamento entre Margarida de Valois, a Margot (Isabelle Adjani), irmã do rei francês Charles IX (Jean-Hughes Anglade), e o rei Henrique de Navarra (Daniel Auteuil). A união de conveniência entre a católica e o protestante, armada pela rainha-mãe dela, Catarina de Médicis (Virna Lisi), deveria selar a paz entre os dois lados. No entanto, é estopim de um dos mais sangrentos massacres da história francesa, conhecido como A Noite de São Bartolomeu, em que foram mortos milhares de protestantes (fala-se em 30.000 vítimas).
Um dos aspectos a conferir vitalidade a este drama histórico é a enérgica articulação entre o público e o privado. Visita-se a intimidade destes palácios em que os nobres tramam suas conspirações e traições, ao mesmo tempo em que se entregam a paixões desmedidas, não raro.incestuosas. Entre elas, aquela que surge entre Margot e De la Môle (Vincent Perez), forasteiro protestante tragado pelo turbilhão daqueles dias.
Num quadro político assim complexo, seria difícil manter o foco e compreender todas as lealdades oscilantes caso não fosse Chéreau um condutor tão exigente e preciso na costura destas relações perigosas. E ele o faz sem perder de vista a complexidade dos principais personagens: o fraco e instável Charles IX, a voraz e impulsiva Margot, seus irmãos violentos e incontroláveis, Anjou (Pascal Greggory) e Alençon (Julien Rassam), o feroz duque de Guise (Miguel Bosé), o passional De la Môle, e acima de todos, a maquiavélica rainha Catarina - cujas manobras astuciosas para deter o controle fabrica tragédias cada vez maiores.
Com locações entre a França (Bordeaux), Alemanha, Itália e Portugal, centenas de extras e figurinos, animais (cavalos, cães de caça), o filme tem uma produção requintada, que trabalha em favor do realismo, da autenticidade da história que retrata, não de um embelezamento estéril. Por isso, não faltaram críticos a um suposto excesso de violência, que certamente não procede. Não há qualquer violência gratuita. Essa câmera que capta o sangue, as mortes, as lutas, está apenas onde tem que estar para contar a história com a premência que almeja. Nessa urgência, Chéreau inscreve a sintonia entre as épocas da humanidade, todas violentas. Na época da produção e lançamento do filme, aconteciam os massacres étnicos em Ruanda, a guerra civil étnico-religiosa que esfacelou a antiga Iugoslávia. Vinte e sete anos depois, quantas outras guerras e massacres poderíamos apontar?