Uma figura quase messiânica – com uma impressionante semelhança física com o escritor inglês Alan Moore – abre o documentário Cine Marrocos. Sentado numa plateia de madeira do antigo cinema paulistano, ele diz: “Não confiem em mim, pois maldito é o homem que confia em outro homem.” Para um documentário – um gênero pautado pelo contato com o real –, essa é uma abertura, no mínimo, intrigante. Seguem-se imagens dos dias de glória da sala, situada no centro da cidade de São Paulo, que foi conhecida como a mais luxuosa da América Latina.
Inaugurado em 1951, o prédio foi ocupado pelo MTST em 2013, e são esses moradores que ganham voz no filme dirigido por Ricardo Calil, vencedor do prêmio principal na Competição de Longas Nacionais, do Festival É Tudo Verdade de 2019. Na sala gigante, os moradores e moradoras assistem a Crepúsculo dos Deuses, um filme sobre decadência física e emocional de uma estrela do cinema (Gloria Swanson), o que parece espelhar a própria trajetória da sala, que, de certa forma, ganhou sobrevida quando foi ocupada.
Quando aquela figura marcante do início do filme, Valter, volta à cena, ele sugere que as pessoas que vivem no antigo Cine Marrocos assistam a filmes antigos, que foram exibidos na sala num festival internacional em 1954, e suas cenas sejam reproduzidas. Ele será o diretor. Línguas se misturam nas entrevistas, homens e mulheres de diversos cantos do mundo, cujo destino levou a São Paulo. Nesse momento, o documentário acompanha uma espécie de processo criativo que ainda não se sabe onde chegará.
Em seus documentários – uma filmografia que inclui Uma noite em 67, codirigido por Renato Terra, e Os Arrependidos, vencedor do É Tudo Verdade de 2021, este codirigido com Armando Antenore –, Calil mostra uma grande curiosidade pelo material humano. Sua experiência como jornalista certamente o ajuda na condução das entrevistas, e com elas compõe um vasto painel do mundo contemporâneo – ao menos, do mundo pré-pandemia. Aqui, ele entrega seu filme formal e esteticamente mais ambicioso, colhendo certa inspiração de Jogo de Cena, de Eduardo Coutinho, mas sem a charada do que é real e do que é performance. A encenação é clara e assumida.
Entre um exercício de atuação e outro, emergem histórias de conflitos mundiais, de vidas destroçadas, de novas esperanças. Durante esses momentos em que fazem cenas de filmes antigos, o mundo do lado de fora parece não existir. São cenas de poesia visual. A questão que poderia emergir disso é uma espécie de estetização da miséria, mas o respeito e o carinho que o filme tem por essas figuras aponta em sentido contrário. O que esses momentos realmente representam são respiros em vidas para as quais a arte não é uma preocupação no momento.
Chega uma hora, porém, em que a realidade bate à porta, através de uma operação policial. Pouco depois, ocorre a reintegração de posse do prédio. Valter, novamente ele, canta melancolicamente Saudosa Maloca, de Adoniran Barbosa, enquanto os moradores deixam o Cine Marrocos, traçando, mais uma vez, o paralelo que o filme faz o tempo todo, entre a vida, a sociedade e a arte.