17/04/2025
Docudrama

Ana. Sem Título

Em busca de Ana, artista plástica brasileira e militante antiditadura nos anos 1960 e 1970, a atriz Stela Rabelo segue as pistas das cartas trocadas entre ela e diversas outras artistas na época, em Cuba, Argentina, México e Chile.

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Não é raro que, para dar conta de realidades complexas, se tenha de recorrer à ficção para atingir uma verdade mais funda. De várias maneiras, é isto o que ocorre neste novo filme de Lúcia Murat, Ana.Sem Título, em que uma personagem ficcional, Ana (Roberta Estrela D’Alva), enfeixa em si as histórias de várias mulheres, tristemente reais, em seus embates contra as ditaduras latinoamericanas recentes. 
 
O roteiro, de Lúcia e da escritora Tatiana Salem Levy, inspira-se livremente na peça Há Mais Futuro que Passado, de Clarisse Zarvos e Daniela Ávila Small. O dispositivo narrativo que se cria é a procura de uma atriz, Stela Rabelo, em busca dos vestígios de Ana, uma artista plástica que partiu de sua cidade natal, no Rio Grande do Sul, no fim dos anos 1960, militando com sua arte transgressora em diversos movimentos da época, tanto no Brasil, quanto em outros países latino-americanos. Paralelamente, envolveu-se na resistência à repressão ditatorial de vários deles.
 
Como única pista, Stela tem nas mãos as cartas trocadas por Ana com diversas mulheres, artistas como ela, em Cuba, na Argentina , no México e no Chile - o que permite ao filme iluminar um pouco a trajetórias de diversas artistas reais, como a cubana Antonia Eiriz, as argentinas Lea Lublin e Maria Luisa Bemberg, a mexicana Kati Horna e a chilena Luz Donoso. 
 
Nesse percurso de Stela, em suas conversas com personagens de todos esses países, na busca de uma Ana de quem se desconhece até o sobrenome, o filme constroi uma narrativa que sustenta, com razão e sentimento, uma reflexão sobre os descaminhos desta América Latina sempre tão sacudida por movimentos autoritários. Permeando tudo, ergue-se, cristalino, um manifesto sobre a importância da resistência de todas estas artistas, não poucas submetidas à prisão, à tortura e ao desaparecimento forçado, além da censura ao seu trabalho. 
 
Por toda esta delicada complexidade e fluidez, Ana.Sem Título torna-se uma experiência pessoal de cada espectador-viajante neste que é, também, um road movie, em que Stela será exposta a descobertas e encontros notáveis - como com as Mães da Praça de Maio, em seu incansável questionamento público sobre o destino de seus filhos desaparecidos. Não se deixa de mencionar que o Brasil, nessa área, tem seu fardo, seu passivo irresolvido de pelo menos 430 desaparecidos. A memória, não raro é um exercício doloroso, mas imprescindível, ainda mais em tempos de tentativa de apagamento e de reescritura do passado.
 
Um recurso interessante é permitir conversas, diante das câmeras, entre Stela e membros da equipe, como o diretor de fotografia Léo Bittencourt, em torno de suas próprias noções e lembranças sobre a ditadura brasileira de 1964-1985. Eles são, afinal, de gerações diferentes da diretora Lúcia Murat, ex-presa política que desfilou suas próprias vivências em filmes como Que bom te ver viva, Quase Dois Irmãos e A Memória que me Contam. Dessa troca de memórias entre gerações, afinal, é que se nutre a formação da consciência de um país ainda inconcluso em tantos aspectos. 
 
Essa Ana fictícia, mas tão impregnada de tantas mulheres reais, ganha uma corporalidade magnética na sua composição por Roberta Estrela D’Alva, a poderosa slammer que incendeia a tela de uma verdade forte, sincera e comovente.  
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