Jane Campion mergulha de forma intensa e inusitada no mundo masculino nesta potente adaptação do romance de Thomas Savage que lhe valeu o Leão de Prata (direção) no mais recente Festival de Veneza - e que recebeu no Brasil um título absurdo, cuja estranheza poderá inclusive afastar alguns espectadores menos atentos, que não saibam que se trata do novo filme da premiada diretora e que deveria ter ficado mais próximo da simbologia do nome original do livro, The Power of the Dog. No Oscar 2022, o filme recebeu 12 indicações, vencendo apenas um, muito justo, de melhor direção.
Voltando a dirigir depois de 12 anos - seu último havia sido O Brilho de Uma Paixão, 2009 - , a cineasta neozelandesa comanda com maestria a tensão e o ritmo de uma história ambientada nos anos 1920 em Montana - cenário que, no filme, foi substituído pelas montanhas da Nova Zelândia.
É ali que se retrata a relação entre dois irmãos da rica família de rancheiros Burbank - George (Jesse Plemons) e Phil (Benedict Cumberbatch). Dividindo tudo, até sua intimidade, morando juntos há anos no mesmo quarto, eles não poderiam ser mais diferentes. George é quieto e sutil, enquanto Phil exsuda uma masculinidade agressiva, exuberante e, não raro, tóxica. E é com uma ferocidade magoada que ele recebe a notícia do casamento repentino do irmão, George, com uma viúva das redondezas, Rose Gordon (Kirsten Dunst), dona de um pequeno restaurante-hospedaria.
Para Phil, o casamento equivale a uma traição e ele reage com a virulência de um amante traído, embora o não seja, à chegada de Rose na casa. Não fará rodeios do quanto a detesta e do quanto tornará sua vida difícil.
É particularmente eficaz a maneira como Campion constrói o tom de ameaça permanente mantido por Phil, que não se aproxima de Rose, mas sempre a faz saber que ele não está longe - como quando reproduz, com seu banjo, a melodia que ela toca no piano, num duelo que os instrumentos substituem as armas.
Rose tem um filho, Peter (Kodi Smit-McPhee), que está estudando medicina e vem passar férias no rancho. Delicado, o rapazinho magro, de aparência feminina, gosta de fazer flores de papel. E assim se torna um alvo ainda mais direto da exasperação machista de Phil.
O engenho da diretora, também autora do roteiro adaptado, revela-se não só na construção destes climas entre poucos e muito bem-definidos personagens, como em sua inserção no microcosmo de seu tempo e lugar. Assim, são particularmente intensas as cenas em que Phil acirra os ânimos de seus vaqueiros quando Peter passa andando pelo rancho. A fotografia - de Ari Wegner - focaliza montanhas, não raro banhadas de um sol dourado, em vários momentos do dia, não só como um cenário, mas como um ambiente que revela e esconde seus elementos, que interferem de modo a decidir o destino dos personagens que os habitam.
Não menos eficaz é a maneira como a diretora enceta seu jogo entre o quarteto, levando-nos a imaginar desfechos trágicos numa e noutra direção, mas finalmente surpreendendo na intensidade com que um dos personagens é capaz de dissimular suas intenções - que, por mais violentas que se mostrem, não deixam de resultar de um profundo amor. É, afinal, na junção dos extremos, na maneira como eles se tocam na vida humana, que histórias são capazes de ganhar vida e relevância. E Campion mostra estar no auge da forma em um filme absolutamente impecável, envolvente, inquietante e cuja lembrança não nos abandona por muito, muito tempo - tal como um sonho que se tenta decifrar muito depois de se ter acordado.