15/01/2025
Crônica

Roma (1972)

Mistura original de ficção e docudrama apresenta Roma vista pelos olhos de Federico Fellini, misturando imagens e personagens reais com recriações de situações vividas na cidade que ele adotou ainda jovem.

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As cidades mais amadas por Federico Fellini (1920-1993) jamais existiram - exceto na sua imaginação. Rimini, onde ele nasceu, e a Roma em que ele viveu quase toda a vida nunca foram na realidade como ele as filmou. Quem as visitar in loco, jamais verá o mesmo que ele via com os olhos de sua mente insaciável em criar mitologias únicas. Por isso, quase sempre é melhor ficar com a lenda que Fellini criou do que com a cidade real.

Roma, o filme, também é único por outro motivo. A mistura de gêneros e tons de que só Fellini era capaz torna-o um produto tão híbrido que resiste à classificação - não foi mesmo por acaso que foi criado o adjetivo "felliniano". Os filmes do diretor só se parecem com eles mesmos.

Daí, nada melhor do que partir para a descoberta ou redescoberta deste trabalho de 1972, felizmente relançado em cópia nova, com as cores estalando, embora se note, aqui e ali, uma discreta dessincronia no som de alguns diálogos, embora nunca atrapalhe a excepcional trilha do mestre Nino Rota. O ideal é deixar-se ir, acompanhando a câmera frenética de Fellini nesta viagem, que começa com a reconstituição de sua própria chegada à cidade, em plena II Guerra Mundial, quando ele tinha 18 anos de idade (quando é interpretado pelo ator Peter Gonzales). É com o olhar deste jovem que desembarca numa caótica pensão familiar, povoada de personagens impagáveis - como a dona obesa que não se move da cama e crianças endiabradas - que Fellini começa a delinear o caos da Cidade Eterna. Uma desordem criativa, que ele amava, mas que era feroz na mesma medida que instigante.

O jovem Fellini descobre as ruas onde o povo come nas mesas das cantinas populares, que espalham suas mesas nas calçadas, quase no limite da linha do bonde, que passa rente às travessas de macarrão. Também se revelam aos seus olhos as delícias de bordéis de todas as categorias, onde homens de várias idades disputam encantos reais ou decadentes. O mundo dos desempregados e vadios lhe é apresentado no teatro de variedades da Barafonda, onde a platéia ruidosa não se constrange de atirar tudo o que tem à mão, inclusive um gato, nos artistas mambembes que se revezam no palco.

Duas seqüências pelo menos são antológicas. Uma delas recria a escavação do metrô romano, sempre interrompida pela descoberta de riquezas arqueológicas num subsolo que tem nada menos de oito camadas. Um furo na rocha revela uma antiga casa romana na qual a entrada do ar fresco apaga rapidamente os milenares afrescos das paredes. Outra é o impagável desfile de moda eclesiástica, mais um motivo para atrito entre Fellini e a Igreja Católica. Não é para menos. O desfile apresenta modelos para hábitos religiosos com total irreverência, como se fosse uma performance de escola de samba. Num dos segmentos, dois homens vestidos com o traje vermelho dos cardeais desfilam de braços dados, de patins, num modelito intitulado: "Au paradis toujours plus vite" (ao paraíso sempre mais depressa).

Celebridades em seus próprios papéis reforçam o vínculo do filme com a vida real. O escritor americano Gore Vidal revela que havia escolhido viver em Roma por ver em nenhum outro lugar que nessa cidade tantas vezes destruída e reconstruída "o posto ideal para ver se tudo acabará ou não". E como esquecer a amorosa bronca da atriz Anna Magnani (que morreria meses depois), interrompendo uma delirante descrição do próprio Fellini a seu respeito com um sonoro "Vai dormir, Federí!" - antes de fechar-lhe a porta na cara?

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