Dia de protestos nas ruas de Paris contra o governo Emmanuel Macron. Dezenas de "coletes amarelos" entram em confronto com a polícia, que os reprime com violência. Vários deles terminam num hospital público, já congestionado por seu movimento normal. E ainda está ali a cartunista Raphaelle, que se feriu numa queda e vive aguda crise com sua parceira há 10 anos, Julie.
- Por Neusa Barbosa
- 03/05/2022
- Tempo de leitura 3 minutos
Conhecida por melodramas românticos como Partir e Um Amor Impossível, a diretora Catherine Corsini arrisca-se a uma radiografia sociopolítica da dividida França atual em A Fratura - que venceu a Palma Queer no Festival de Cannes 2021.
Se ao centro há a crise de um casal em ponto de ruptura, a cartunista Raphaelle (Valeria Bruni Tedeschi) e a editora Julie (Marina Foïs), a história se expande para incorporar seu contexto externo, um dos mais explosivos dias de protestos dos coletes amarelos em Paris, que culminou com choques violentos com a polícia e um hospital público abarrotado de pacientes.
Os corredores deste hospital, subfinanciado, com falta de pessoal, onde pessoas de todas as classes se misturam, tornam-se o retrato em carne viva de uma França em turbilhão, um ano antes das eleições presidenciais, que acabaram de ocorrer em 2022.
Se é verdade que Valeria e Marina são duas atrizes excepcionais, não é menos real que sua crise dura tempo demais em cena, especialmente porque Raphaelle é uma personagem no limite do insuportável - que Valeria interpreta à perfeição. No final das contas, fica-se com a dolorosa sensação de que mais tempo deveria ter sido atribuído à real estrela desta história, a enfermeira Kim (Aïssatou Diallo Sagna, que é enfermeira na vida real, conferindo uma verdade absoluta à sua personagem).
Mãe de uma criança que está doente nesse dia infernal, Kim deixa sua bebê em casa aos cuidados do marido para assumir mais um plantão, estourando a cota do permitido semanalmente, apenas para não deixar na mão seus colegas sobrecarregados. Este hospital superlotado, que, por causa dos feridos no protesto, supera sua capacidade de atendimento, torna-se o símbolo desta França em conflito, também pelas diversas menções diretas a dois personagens conhecidos da política, o presidente Emmanuel Macron e sua opositora, Marine Le Pen. Mas não só. Aos brasileiros mais atentos, não faltarão semelhanças do hospital público em pressão máxima com o nosso SUS, dentro ou fora da pandemia.
Sem dúvida, A Fratura é um filme de passaporte inegavelmente francês, a começar pela verborragia. Mas, nesta situação, a eventual histeria tem um contexto que lhe dá autenticidade, encadeando as crises pessoais, como a do casal, e também os diversos personagens que emergem dos protestos, como um caminhoneiro colete amarelo, Yann (Pio Marmaï), gravemente ferido pelos policiais e aflito pelo risco de perder seu emprego, a jovem Elodie (Camille Sansterre), espancada pela polícia, além dos casos normais que procuram atendimento de emergência num pronto-socorro.
A diretora acerta bastante na reconstituição quase documental dos protestos de rua e do ritmo frenético dos corredores deste hospital, em que se alternam momentos de dor, desespero e solidariedade, passando mesmo por uma discussão vincada na luta de classes, entre a egocêntrica Raphaelle e o caminhoneiro Yann. Isso até funciona bem. Talvez Corsini, que assina o roteiro com Agnès Feuvre e Laurette Polmanss, não tivesse que ter elencado tantos incidentes, nem tantos personagens, para dar vida e energia ao seu relato. Mas, indubitavelmente, esta história respira vida e autenticidade e é, provavelmente, o melhor trabalho de uma diretora dada a exageros - do que ela não se priva aqui também.