Se o Brasil, especialmente desde a ditadura militar, alguns setores governamentais mantiveram uma relação tóxica com as artes, em especial aquela mais ousada, isso se intensificou dramaticamente com a eleição de Jair Bolsonaro. O documentário Quem Tem Medo?, de Dellani Lima, Henrique Zanoni e Ricardo Alves, acompanha artistas e performers cujos trabalhos foram censurados ou confrontados de maneira nada pacífica nos últimos anos, com a ascensão da extrema-direita.
O filme começa com o coreógrafo Wagner Schwartz, talvez o caso mais emblemático dessa questão, que em 2017 foi atacado e acusado de pedofilia por causa de sua performance chamada La Bête, no Museu de Arte Moderna de São Paulo. Nela, seu corpo nu era manipulado pelo público. Um pequeno vídeo que circulou na internet, no dia seguinte à apresentação, mostrava uma mulher e sua filha pequena discretamente tocando-o.
A cena isolada deu margem a inúmeras distorções e, a partir desse momento, Schwartz desceu ao inferno, sendo acusado por pastores evangélicos, políticos oportunistas e pessoas comuns de pedófilo. Um inquérito chegou a ser aberto em São Paulo. Em Quem Tem Medo?, o artista resgata o infeliz episódio, que o deixou traumatizado, e fala da frustração e do medo de se apresentar novamente depois desse dia.
O documentário traz depoimentos de alguns e algumas artistas que passaram por experiências parecidas em tempos recentes. A atriz e dramaturga trans Renata Carvalho, que atuou no papel de Jesus Cristo na peça O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, em 2018, também foi atacada e censurada. Esses são apenas dois exemplos das dezenas de artistas e obras que sofreram represálias, conforme mostra uma extensa lista ao final do documentário.
Ao resgatar todos esses episódios, Quem Tem Medo? faz uma espécie de cronologia de um movimento assustador e crescente, que passa por um discurso que emulava uma estética nazista do então secretário de cultura, Roberto Alvim, em 2019, e que culmina nos dias de hoje, em que a arte – e, em última instância, a vida social em si – vem sendo cada vez mais cerceada. É também uma figuração, pela esfera das artes, do estado em que o país se encontra mergulhado, em trevas ideológicas.
“Nosso silêncio não vai nos salvar”, diz Renata, que, no ano passado, recebeu no Festival do Rio um prêmio especial por sua interpretação no longa Os Primeiros Soldados, de Rodrigo Oliveira. Ao colocar de um lado a repressão, e de outro, a resistência, o trio de diretores do documentário celebra artistas que ousaram desafiar os padrões e não se calaram diante da censura. Nesse sentido, é um filme esclarecedor e marcado pela esperança por novos tempos.