Figura constante da cinematografia espanhola, vista em filmes como Tudo sobre Minha Mãe, de Pedro Almodóvar, Rosa Maria Sardá teve de esperar nada menos de 31 anos de carreira - e 60 de vida - para tornar-se protagonista de um filme. É o que ela faz com uma garra toda peculiar nesta comédia dramática que mantém seus pés um tanto acima do chão, num hiper-realismo que o cinema espanhol sabe como poucos materializar, com muita desenvoltura e invenção.
Além de permitir à veterana atriz deixar de ser apenas aquele rosto furtivo que se reconhece sempre no canto da tela, este filme saboroso - especialmente para as mulheres - tem igualmente o mérito de apresentar no Brasil o trabalho do diretor Ventura Pons, um veterano do teatro e autor já de 15 filmes (este é seu 13º). Catalão de Barcelona, como Rosa Maria, Pons constrói esta história em torno de sua cidade e em sua própria língua, em cuja sonoridade os brasileiros identificarão não poucas palavras. Um regionalismo que contribui para a ambientação, acrescentando-lhe um sabor que seria diverso caso a ação se encontrasse em Madri. Alguma coisa como a singularidade do Rio de Janeiro frente a São Paulo e vice-versa.
A protagonista é a bilheteira de cinema Anita (Rosa) que, depois de 34 anos trabalhando no mesmo lugar, é surpreendida pela decisão de seu chefe de dar-lhe uma licença-prêmio - em que a viúva cinqüentona e solitária não sabe muito bem o que fazer. Aconselhada pela vizinha jovem e sacudida, Natalia (Maria Barranco), ela vai para a praia. Na volta para reassumir seu posto, o choque: ao invés do cinema, encontra um pátio de obras. Logo mais, existirá ali um multiplex, em cuja novíssima bilheteria não haverá mais lugar para Anita, considerada velha demais para a nova instalação.
Contemplando a aposentadoria antecipada e sem ter muito o que fazer, Anita começa a visitar todo dia a obra. Num desenrolar de nonsense tipicamente latino, torna-se uma figura querida dos peões e até do supervisor. Ganha sorrisos, cafezinho e até uma cadeira com guarda-sol para fiscalizar tudo de perto. De quebra, é paquerada pelo operador da escavadeira, Antonio (José Coronado) - com quem protagoniza uma cena cinematográfica, inspirada no filme King Kong, num dia em que a mulher cai num buraco e é resgatada pelo musculoso trabalhador. Ponto de partida para uma fogosa história de amor.
Outro mérito do diretor está em abrir o leque intimista, colocando no centro da narrativa uma discussão paralela sobre o próprio cinema. A história da sala é um bom exemplo. Afinal, o que começou como um obscuro cinema pornô virou uma sala de arte antes de sucumbir à invasão irresistível das multissalas. Tudo isso diante do olhar atento da bilheteira, cujos olhos acumularam uma admirável quilometragem em celulóide.
Falando diretamente à câmera, Anita cria uma empatia direta com o espectador. Salta aos olhos sua humanidade comum, iluminada por esses momentos em que o diretor acentua referências cinematográficas, temperando com elegância e humor esta biografia. Um bom exemplo é a seqüência em que Anita e Antonio recriam uma cena de Rainha Cristina (33), originalmente filmada com Greta Garbo e John Gilbert. Não menos bonita é a lista nos créditos finais, que homenageia tantas outras Anas e Anitas do cinema, como a Annie Hall, de Woody Allen - de quem esta personagem urbana e agridoce é uma declarada descendente, mesmo que deslocada no tempo e na geografia.