21/03/2025
Drama

Ervas secas

Samet é professor numa escola da remota Anatólia Oriental. Ali deve permanecer por quatro anos, antes de poder pedir transferência para Istambul, como sonha. Ele divide sua casa com um colega, Kenan. Um dia, transforma a rotina dos dois o aparecimento de outra professora, Nuray, uma mulher independente e politizada. No Telecine, Prime Video e na Reserva Imovision (a partir de 7/2/2025).

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Habituê do Festival de Cannes, em que já venceu uma Palma de Ouro (em 2014, por Sono de Inverno) e um Grande Prêmio do Júri (em 2011, por Era uma vez na Anatólia), e dono de uma obra autoral sólida, o veterano cineasta turco Nuri Bilge Ceylan desdobra, em Ervas Secas o ocaso da vida de três professores na Anatólia Oriental, no remoto interior da Turquia. 

Por volta dos 40 anos, os dois amigos Samet (Denis Celiloglu) e Kenan (Musab Ekici), que dividem a mesma moradia, e a moça Nuray (Merve Dizdar, prêmio de melhor atriz em Cannes) experimentam o vazio da vida interiorana, sonhando com uma transferência para Istambul, uma vida diferente. Samet é o mais cético, Kenan, o pragmático, e Nuray, uma mulher independente, mas que sofre as limitações de um acidente que lhe causou uma deficiência. 

Com seus longos diálogos circulares, como toda a obra de Ceylan, Ervas Secas discute profundamente a vida, não só na Turquia, inclusive tocando na política de uma maneira mais direta do que seus filmes anteriores. Afinal, a Anatólia Oriental é, por excelência, uma região curda, onde é latente a rebelião desse povo contra o governo central turco, o que explica a presença de um quartel permanente no local. 

O passado de Nuray tem tudo a ver com a política. Nativa daquela região, ela morava em Ancara, onde exercia uma ativa militância, interrompida por ter sido atingida pela explosão de um homem-bomba durante um protesto político. Gravemente ferida, depois da recuperação, ela viu-se forçada a voltar à sua terra natal, para junto de seus pais, mas não mudou suas posições. Defende causas de engajamento e solidariedade, que a colocam em choque direto contra o ceticismo niilista de Samet, sem que esse contraste seja exercido com maniqueísmo. Nada mais eloquente deste abismo de visões de mundo do que uma conversa entre os dois durante um jantar que sustenta uma das discussões mais essenciais dentro de um filme com muita disposição para debater temas densos e abrangentes.

Como em toda a sua obra, Ceylan embaralha vários temas, inapelavelmente imbricados. Pessoas urbanas, como Samet e Nuray, estão em conflito com o ambiente provinciano onde vivem - com a diferença de que Nuray é nativa daquela região, mantendo algum tipo de identificação com os locais que se expressa na singularidade afetuosa das pinturas que realiza e guarda em sua casa. Samet, ao contrário, não esconde um sentimento de superioridade diante daquele lugar, que considera um buraco, ao qual está amarrado pela exigência de lecionar por quatro anos, antes de poder pedir a sonhada transferência para a capital. Kenan, como Nuray, tem origem camponesa, filho de pastores, e se integra com maior facilidade ao ambiente, numa situação em que tornar-se professor representou uma sonhada ascensão social.

A força da burocracia em todo o funcionamento da escola e a própria presença de militares na região retrata o peso de uma estrutura estatal que domina tudo - e não há muitas opções de emprego fora dela, como se observa no filme. Ou as pessoas são agricultoras e pastores - captadas pelas fotografias de Samet como uma espécie de tableau vivant - , ou pequenos comerciantes, como o velho Vahit ((Yüksel Aksu), dono de um pequeno bar frequentado por Samet onde são frequentes as conversas esquerdistas.

São tantas as camadas que se poderia falar muito mais. É o tipo de filme para ver e rever para poder se apoderar das contradições destes personagens, em cuja história se mescla uma suspeita levantada por uma pequena aluna (Ece Bagci) contra Samet e Kenan - um episódio que pesa ainda mais no espírito dos professores e permite ao filme discutir outros temas, como a manipulação da verdade e o ciúme. 

De todo modo, Ceylan nunca procura transformar seus personagens em heróis. O que ele busca, acima de tudo, é revelar as nuances dessa humanidade falha que nos impregna a todos. E, numa rara ousadia, incomum em seus filmes, num momento ele se permite romper a quarta parede, revelando brevemente os bastidores do set, numa lembrança do caleidoscópio da representação.

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