21/03/2025
Documentário

As 4 filhas de Olfa

Olfa criou sozinha suas quatro filhas, depois que deixou o marido abusivo. Empenhou-se de todo modo, até com excessos autoritários, para que elas crescessem seguras e direitas. Porém, as duas mais velhas acabaram cooptadas pelo ISIS. No Prime Video.

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A cineasta  tunisiana Kaouther Ben Hania (de O Homem que Vendeu sua Pele) embaralha depoimentos e reencenações para dar conta da história de uma família feminina exposta a uma jornada extraordinária em As 4 Filhas de Olfa, vencedor do prêmio Olho de Ouro como melhor documentário no Festival de Cannes 2023 e um dos cinco candidatos ao Oscar de documentário 2024. 

A figura dessa mãe é fascinante em suas contradições e também em sua força para criar as meninas sozinha num contexto social bastante adverso. O maior drama vem do desaparecimento de duas delas, as mais velhas, Gohfrane e Rahma, que aderiram ao ISIS quando não tinham mais do que 15 e 16 anos. 

As duas irmãs mais novas, Eya e Tayssir, ocupam o relato ao lado de atrizes que interpretam suas irmãs e sua mãe, tornando a reconstituição de seu passado vívida de uma forma que não teria sido encontrada caso o docudrama se limitasse a um relato oral dos acontecimentos pelas personagens que os viveram - o que eventualmente assume a aparência de um psicodrama, sem perder sua veemência. 

Confrontada pela presença de Hind Sabri, que a interpreta em algumas sequências, a própria Olfa acrescenta detalhes que não havia relatado antes, em situações que se transformam também em auto-exame e oportunidade de questionamentos por parte de Eya e Tayssir. Da mesma forma, reviver episódios de sua vida ao lado de Nour Karoui e Ichraq Matar, que interpretam Rahma e Ghofrane, permite às duas irmãs caçulas um poderoso reencontro com as próprias emoções que traz o espectador para dentro de seu drama que de outra forma teria sido bem mais difícil. 

Responsável pelo roteiro e co-autoria da montagem, a diretora conduz este jogo de versões resgatadas sob tantos pontos de vista de uma forma sempre que possível contida, mas em que seria desonesto negar espaço às emoções. Ao fazê-lo desta forma, ela consegue projetar a densidade da tragédia de tantas famílias que perderam seus filhos e filhas para a lavagem cerebral da jihad islâmica, permitindo também que seu filme retrate as múltiplas restrições à condição feminina em seu país.

Da mesma forma, ao se dar voz à figura central de Olfa, esta mãe que lutou sozinha para criar as filhas em meio a tantas dificuldades, procura-se um tom justo, que ao mesmo tempo não deixe escapar suas contradições, a rigidez de seu moralismo que, de algum modo, também contribuiu para que as filhas mais velhas procurassem escapar ao seu controle - que incluiu pesados espancamentos contra elas, como quando Rahma se tornou gótica ou pintou o cabelo de azul. A diretora não deixa de ressaltar a enorme solidão e desproteção dessa mãe divorciada, sem posses nem educação profissional, que se vê abandonada à própria sorte, atormentada pela idéia de impedir a qualquer custo que as filhas se tornassem vulgares ou prostitutas.

Numa cena, Olfa confessa que não queria ter filhas - o corpo feminino, para ela, é um território perigoso, uma noção que é evidentemente fruto de uma educação tradicional, de alguém que cresceu, igualmente, num lar povoado por uma mãe e filhas, abandonadas pelo marido e pai. Esse lar de mulheres foi valentemente defendido de ataques de homens que chegavam a forçar a porta para entrar, por Olfa - que, adolescente, cortou os cabelos e se vestia como menino e não hesitava em agredir fisicamente os invasores. Os homens de sua vida, todos tóxicos, são interpretados por um único ator, Majd Mastoura. 

Kaouther Ben Hania também é eficiente ao conduzir seu relato de forma a expor aos poucos o processo de radicalização de Ghofrane e Rahma, deixando para o final a revelação de seu destino. Veremos seus rostos, como sabemos sua história, embora não possamos ouvir sua versão. Mas o relato de Eya e Tayssir, que escaparam por pouco ao mesmo destino, é mais do que eloquente para descortinar os métodos de captura de corações e mentes que floresceu num contexto que valorizava a volta a princípios e comportamentos mais rígidos, como o uso do hijab, depois de a Tunísia ter vivido anos de uma revolução liberalizante. E do filme emerge um instigante caleidoscópio da complexidade da condição feminina naquele país, muito mais multifacetada do que pudéssemos talvez imaginar. 

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