14/01/2025
Comédia Drama

Ainda temos o amanhã

Na Itália de 1946, Delia é uma dona-de-casa e mãe de três filhos que é brutalizada pelo marido operário, Ivano. Desdobrando-se entre o cuidado da família e bicos para ganhar algum dinheiro, ela sonha com uma vida melhor para ela e a filha mais velha, Marcella. Mas os tempos estão mudando. No Sesc Digital (até 31/12/2024).

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Atriz e cantora conhecida na Itália, Paola Cortellesi não disfarça sua inspiração no neorrealismo para compor Ainda Temos o Amanhã, sua estreia na direção e em que ela funciona também como corroteirista. Uma estreia, aliás, coroada de êxito, já que o filme foi a melhor bilheteria italiana, superando até Barbie naquele país em 2023, com seus 5 milhões de espectadores. 

Paola abraça também o papel da protagonista, Delia, uma dona-de-casa maltratada da Roma de 1946, ainda ocupada por soldados norte-americanos como um lembrete da derrota do país na II Guerra Mundial. Delia é casada com o operário Ivano (Valerio Mastandrea), que a brutaliza constantemente, tornando sua vida um pesadelo.

Delia é o símbolo da mulher oprimida não só por este marido, como pelo sogro, Ottorino (Giorgio Colangeli), que passa o tempo praticamente na cama e tenta apalpá-la, e uma rotina extenuante - que inclui cuidar da casa, dos três filhos e ainda sair à rua para ganhar dinheiro com bicos, como aplicar injeções, lavar roupa e consertar coisas, de guarda-chuvas a meias e sutiãs, este um sinal da própria escassez de tais produtos no pós-guerra.

Injetando nostalgia em seu relato, Cortellesi constrói seu filme em preto-e-branco (fotografia de Davide Leone) e num clima de melodrama que extrai o patético de muitas situações - sendo uma das provas mais eloquentes o jantar de noivado de Marcella (Romana Maggiora Vergano), a filha mais velha de Delia, lembrando uma espécie de versão mais suave de Feios, Sujos e Malvados, de Ettore Scola.

Marcella trabalha fora como engomadeira, sendo impedida de estudar pelo pai machão - que se recusa a gastar com ela qualquer tostão na escola, reservada aos dois filhos menores. E, como a mãe, a moça é extorquida de todo o dinheiro que ganha por este pai neurótico e egoísta, que atribui seus acessos de violência a ter “lutado em duas guerras”.

Um dos acertos da construção do enredo está em desnudar como o patriarcado escudado no machismo é um sistema que se repete indefinidamente, de geração em geração, e cuja violência está à vista de todos e todas, tornando-se assim cúmplices silenciosos. Ninguém reage ou defende Delia dos golpes de Ivano, impossíveis de não serem ouvidos pelos vizinhos. Ela mesma sustenta uma passividade estóica que termina por exasperar a filha, que deseja outro futuro. 

É neste espelho entre mãe e filha que se estrutura o plano de Delia para mudar a sorte, aliás, das duas, usando sua infinita paciência e capacidade de dissimular. Delia tem, literalmente, uma carta nas mãos, cujo teor a diretora manterá escondido dos espectadores criando pistas para estimular sua imaginação a partir das confissões da protagonista à amiga Marisa (Emanuela Fanelli). Entre esse envelope e um outro, em que ela esconde o dinheiro desviado da ambição do marido, a história constrói uma possibilidade de libertação feminina que não parecia tão nítida no começo, quando a primeira cena nos sacode com um tapa literal para lembrar o quanto a violência doméstica se oculta na intimidade das famílias mas cujo brado é impossível deixar de ouvir. 

 

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