Tomando emprestado o nome de um dos quadros mais célebres de Johannes Vermeer (1632-1675), o livro da escritora americana Tracy Chevalier preencheu com ficção as lacunas de parte da vida e da obra de um desses mestres da pintura que são tão apreciados quanto desconhecidos. Perfeccionista rigoroso, o pintor de Delft (Holanda) assinou não mais de 35 quadros. Como tantos grandes artistas, caso de Van Gogh e Modigliani, a fama e a fortuna não o alcançaram em vida. Vermeer morreu jovem, aos 43 anos, angustiado, atolado em dívidas e seu valor artístico só começou a ser resgatado a partir do século XIX.
O enigmático pintor não deixou muitas pistas sobre si mesmo e seu método de trabalho, já que não escreveu tratados nem memórias. O pouco que se sabe dele emergiu de registros burocráticos, como suas certidões de nascimento, casamento e morte, as atas da guilda de artistas que chegou a presidir em sua cidade e seu inventário. Esse mínimo de informação serviu como ponto de partida para o estimulante livro de Chevalier, lançado em 1999, que inspirou este filme de estréia do Peter Webber - que trabalhara antes como montador e na direção de minisséries e filmes para TV, para o Channel Four e a BBC britânicos.
Esta intersecção entre as artes da pintura, literatura e do cinema funcionou na justa medida, como uma experiência sensorial e emocional de um equilíbrio e sensibilidade notáveis. Por seu apuro, o filme consegue recriar a atmosfera de Delft em 1665 em seus mínimos detalhes. Das paredes às cozinhas, das roupas aos objetos, tudo parece coerente e vivo na história que arma seu eixo em torno do pintor Vermeer (Colin Firth) e a recém-contratada criada de sua casa, a jovem Griet (Scarlett Johansson). O capricho da produção foi destacado em três indicações ao Oscar 2004: fotografia (de Eduardo Serra), figurino e direção de arte.
Sem trair o tempo em que ambienta sua história, nunca parece um filme de época tradicional. As emoções que pulsam entre os personagens tornam-se reconhecíveis à platéia a olho nu, como se eles estivessem mesmo próximos de quem os vê. Por isso, é possível identificar-se com a tensão crescente no lar dos Vermeer. Aos 33 anos, o pintor já tinha alguma projeção no meio, recebendo encomendas de ricos ascendentes, como o negociante Van Ruijven (Tom Wilkinson). Mas ele pinta lenta e meticulosamente, consumindo em seus quadros mais tempo do que sua ansiosa mulher, Catharina (Essie Davis), e sua pragmática sogra, Maria Thins (Judy Parfitt), julgariam sensato - ainda mais tendo em vista as muitas necessidades para o sustento de cinco filhos, com o sexto a caminho (ao final da vida, o casal teria 11, já que outros quatro morreram). A profusão de crianças explica-se pela religião - Vermeer convertera-se ao catolicismo para casar-se com Catharina.
Nesse contexto, apresenta-se a nova criada, Griet, moça protestante que começa a trabalhar para sustentar a família depois que um acidente de trabalho com o pai, um ceramista, deixara-o cego. A mocinha estranha tudo no lar católico e não desperta maiores simpatias nem da patroa Catharina nem de uma das meninas, Cornelia (Alakina Mann). Mas uma sintonia especial une-a ao patrão, que lhe concederá privilégios nunca estendidos nem mesmo à mulher, sogra e filhos: o acesso ao seu ateliê. Somente Griet pode limpar esta sala inacessível, com a condição de colocar todos os objetos exatamente no lugar em que estavam, para não perturbar a ordem deste pequeno universo de onde saem todas as obras de Vermeer.
Mesmo tímida como é, Griet não se furta a algumas observações sobre os quadros do patrão, que ela é a única a ver durante o processo de criação. Parte daí um relacionamento especial, já que Griet demonstra uma compreensão, mesmo que intuitiva, da grande arte que se produz entre aquelas quatro paredes. Cheio de silêncios eloqüentes, o filme se constrói numa sucessão de momentos delicados, de olhares, de roçar de mãos e outras sutis insinuações deste relacionamento amoroso entre a criada e seu patrão. Filme e livro encontram assim uma grande sintonia, tornada palpável na pele de atores em estado de graça - especialmente Firth e a jovem Scarlett, que vem se firmando como a grande estrela jovem do cinema americano, especialmente depois de Encontros e Desencontros.
Sem pretender responder a dúvidas que nunca se poderá esclarecer a respeito de Vermeer, o filme constitui uma atraente viagem ficcional no que poderia, contudo, ter realmente acontecido entre ele e a criada imortalizada em seu magnífico quadro, que faz parte do acervo do Mauritshuis, na cidade holandesa de The Hague - por coincidência, um museu abrigado na antiga mansão de Maurício de Nassau, o conde que foi governador dos domínios holandeses em Pernambuco, no século XVII.