O nome não engana: trata-se de mais um filme enfocando o após a morte, aquele estado nebuloso e incerto sobre o qual religiões de todo mundo têm seu próprio e definitivo ponto de vista. O filme do japonês Hirokazu Kore-eda consegue passar ao largo da visão religiosa - no máximo, admite que há um estágio depois da morte, coisa de que materialistas radicais podem discordar. Mas aí não haveria o instigante filme de Kore-eda.
A única fé a que se recorre aqui é a fé no cinema. Não é por acaso que o cenário é uma espécie de terra de ninguém, povoada por uma reduzida equipe do que se pode chamar de diligentes funcionários - a serviço de quem, não se sabe - , encarregados de receber um grupo de pessoas que acabam de morrer. Guardiães desta fronteira final, estes delicados monitores informam aos recém-chegados que eles acabam de falecer e que têm três dias para escolher a lembrança mais feliz de suas vidas - futura base de um filme que substituirá suas memórias por toda a eternidade.
Não poderia ser mais cinematográfica esta visão de paraíso. E é curioso, em se tratando de um mundo etéreo como este - que tanto serve para simbolizar o depois da vida ou a imaginação -, o quanto os recursos deste filme dependem completamente de recursos materiais. Precisa-se de câmeras, cenários, atores, figurino, maquiagem, até de efeitos especiais, de uma simplicidade que nunca se intimida na busca da própria superação, diante da ambiciosa missão de traduzir seu tema da forma mais fiel. Uma enorme responsabilidade, já que o espectador deste filme deve sempre ficar satisfeito no final, porque partirá com não mais do que esta sensação em sua bagagem, impossível de ser trocada no futuro.
É sintomático como o filme de Kore-eda ganha a adesão de seus próprios espectadores, suscitando a pergunta: afinal, que lembrança vale toda a eternidade? Da mesma forma, evita as armadilhas do espiritualismo de fachada das superproduções de Hollywood ao manter-se enraizado num humanismo rico de emoções discretas. A façanha é tanto maior quando se sabe que o diretor filmou depoimentos de não-atores, que falam diretamente para a câmera quais são as suas lembranças da vida inteira. Este entrelaçamento do real e do fictício é de tal forma equilibrado que não se sabe onde começa um e termina o outro, ainda mais que Kore-eda evita distinguir os amadores e os atores.
Isso é mero detalhe. O mais importante é o quanto um filme aparentemente minimalista como este consegue multiplicar-se em camadas de sentido e reinterpretação à medida em que se recorda suas passagens. Ao final, fica a sensação de que, se há algo que não se pode superar, deste ou do outro lado da vida - se existir - é a condição humana, única medida de todas as coisas.
Cineweb-28/6/2002