16/03/2025
Drama

Lavoura Arcaica

O jovem André, que abandonou sua família, é procurado por Pedro, seu irmão mais velho, encarregado pela mãe de trazê-lo de volta para a fazenda da família. Nas memórias de André, narrador da história, filtram-se os acontecimentos, que incluem seus conflitos com as tradições cristãs e familiares e o próprio desejo proibido por sua irmã, Ana.

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Radical na literatura, Lavoura Arcaica, o livro do escritor paulista Raduan Nassar encontra, na transposição cinematográfica do cineasta estreante Luiz Fernando Carvalho, um retrato não menos doído, um grito não menos primal do que o da literatura, em imagens primorosamente construídas pela fotografia preciosa do veterano Walter Carvalho.

Os diálogos transpõem, quase palavra por palavra, o texto primoroso de Nassar, um autor bissexto, apesar do talento raro. No intervalo de 26 anos qe separou o filme do lançamento do livro, o escritor lançou apenas mais outros dois - Um Copo de Cólera, adaptado para o cinema em 99 por Aluizio Abranches, e o livro de contos Menina a Caminho. Depois, calou-se num silêncio criativo que seus leitores só podem lamentar.

Cineasta com altas ambições artísticas - já visíveis em seu trabalho para a TV, como a minissérie Os Maias, a partir da fonte literária de Eça de Queirós - Carvalho lança-se a um mergulho profundo neste filme. Para começar, por recompor como diálogo o que no texto de Nassar é narração. Sendo o que é, um texto elaborado, não tornou nada fácil a tarefa dos atores ao declararem suas falas. Um esforço, que, às vezes, se sente em cena, independentemente do inegável empenho de todo o elenco.

Nesse sentido, Lavoura Arcaica, o filme, comete o mesmo pecado de Um Copo de Cólera. Embora indiscutivelmente mais modesto, o filme de Abranches era, como este, excessivamente reverente à literatura de Nassar. Os dois cineastas, por coincidência em seus primeiros filmes, curvaram-se à presença poderosa deste pai artístico que guiou seus primeiros passos no cinema.

Carvalho tem, sobre Abranches, a vantagem de dominar incrivelmente melhor a gramática das imagens, sendo ele mesmo o autor da montagem de seu filme. Assim, não poucas seqüências deste belo filme ficam indelevelmente impressas na memória dos espectadores: André (Selton Mello) apaziguando seu furor sexual com seus pés na terra molhada, a festa da família, a brincadeira amorosa da mãe (Juliana Carneiro da Cunha) com o filho ainda menino (Pablo Câncio), a dança de Ana (Simone Spolidoro) desbloqueando sua libido com os pertences da prostituta (Denise Del Vecchio), a fábula do faminto traduzida num severo preto-e-branco, sem contar o confronto entre o pai (Raul Cortez) e o filho desgarrado.

O melhor de tudo é que estas belas imagens, para as quais Carvalho busca inspiração inclusive em quadros famosos - como não ver Abapuru, de Tarsila do Amaral, no Selton encolhido diante do irmão (Leonardo Medeiros)? - não estão no filme apenas a serviço da decoração da cena. Cada uma delas, assim como a precisa iluminação permeada de sombras, funciona como elemento dramático e narrativo e delineia o caminho da história que poucos segredos trará, em essência, já que o livro é bastante conhecido.

As surpresas para o espectador que já tenha lido a parábola trágica de Nassar serão de tom e coragem. Carvalho vai até mais longe do que Raduan em alguns detalhes, introduzindo canções e falas em árabe para reconstruir o ambiente da família de origem libanesa que está no centro do drama - recurso a que nem o escritor recorreu textualmente no livro, exceto pela palavra "maktub" (está escrito). Carvalho não recua, também, em mostrar abertamente a pulsão que move seu protagonista, abrindo o filme com uma cena de masturbação.

Com certeza, todo o elenco de Lavoura Arcaica entregou-se sem rodeios. Todos os atores isolaram-se por seis meses numa fazenda em Minas Gerais, na pequena localidade de São José das Três Ilhas, mergulhando num laboratório que incluiu atividades campestres, como arar a terra, ordenhar vacas, fazer o pão, além de aprender árabe e dançar como os personagens do livro. O resultado se traduz nesse clima veraz com que cada um impregnou seu papel. Com certeza, nunca se viu o habitualmente bonachão Selton Mello tão transfigurado e trespassado de angústia e de dor como aqui. Raul Cortez, presença rara nas telas nacionais, incorpora um patriarca inesquecível - a ponto de se lamentar que Carvalho não tenha ousado criar mais cenas para ele no filme.

Outro atrevimento que o diretor-roteirista não teve foi o de criar mais falas para a personagem essencial de Ana - e o silêncio da moça na cena crucial da capela fica parecendo uma lacuna dramática. Mais uma vez, menos fidelidade ao livro poderia render ainda mais qualidades a um filme tão poderoso e tão digno de elogios.

Merecidos prêmios talharam o caminho do filme: melhor contribuição artística no Festival de Montreal/2001, troféu especial do júri no Festival de Biarritz, melhor longa-metragem nacional para o público na Mostra BR de Cinema em São Paulo, Grande Prêmio BR do Cinema Brasileiro e muitos outros, totalizando 50. Em sua estreia no cinema, em 2001, com apenas duas cópias atraiu cerca de 300.000 espectadores às salas. Que este relançamento, 20 anos depois, possa apresentar este grande filme a um público maior, honrando a ambição, o rigor artístico e a defesa da imaginação do novo cineasta - qualidades que sempre serão bem-vindas ao cinema de qualquer país.

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