Fazendeiro cruel e temido, Nhô Augusto é abandonado por mulher e filha. Caçando a mulher, que o trocou por outro homem, ele é espancado e deixado para morrer. Todos o acreditam morto. Mas ele sobrevive, cuidado por um humilde casal de camponeses. Vive com eles uma vida retirada e devota. Até o dia em que cruza seu caminho o bando do cangaceiro Joãozinho Bem-Bem.
- Por Nayara Reynaud
- 22/09/2015
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Em Sagarana, seu celebrado primeiro livro publicado, Guimarães Rosa (1908-1967) encerra a ímpar coletânea de contos com uma espécie de novela sobre a queda e busca por redenção de um homem sertanejo que se tornaria não só o personagem mais famoso de sua obra, se Riobaldo e Diadorim de Grande Sertão: Veredas forem considerados hors concours, mas um dos mais icônicos da literatura brasileira. Augusto Estêves, mais conhecido em suas bandas como Nhô Augusto e imortalizado na memória dos leitores como Augusto Matraga, tem no cerne de sua jornada a clássica e universal questão da dualidade humana, do embate interno entre o Bem e o Mal, o Divino e o Sagrado.
Quase duas décadas depois de sua publicação em 1946, o conto A Hora e a Vez de Augusto Matraga foi levado às telas do cinema no longa homônimo de Roberto Santos (1928-1987), clássico do Cinema Novo que se consagraria como o grande vencedor da primeira edição do Festival de Brasília, então Semana do Cinema Brasileiro, em 1965 – levou os Candangos de Melhor Filme, Diretor, Roteiro e Ator para Leonardo Villar.
Passados exatos 65 anos, uma nova adaptação do texto do escritor sairia vitoriosa em uma premiação: A Hora e a Vez de Augusto Matraga, de Vinícius Coimbra, ganhou cinco troféus no Festival do Rio de 2011, entre eles os de Melhor Filme, tanto pelo júri oficial quanto pelo popular. No entanto, após uma série de problemas burocráticos na distribuição, só agora, com quatro anos de atraso, a produção consegue chegar ao circuito comercial.
Para quem não conhece o conto ou não se lembra mais, a história narra como Nhô Augusto (João Miguel), fazendeiro temido em Pindaíbas, leva uma rasteira da sua família - a esposa (Vanessa Gerbelli) e a filha a quem ele não dava a mínima atenção -, de seus capangas e de seu inimigo, o Major Consilva (Chico Anysio). Quase morto, o cabra tinhoso é resgatado por um pobre casal (Ivan de Almeida e Teca Pereira vivem Serapião e Quitéria) e tenta não só recuperar seu castigado corpo, mas também sua alma tão pecadora. Porém, quando se depara com o bando de Joãozinho Bem-Bem (José Wilker), o homem em busca de salvação tem sua fé testada.
Com boas atuações de um elenco que ainda tem nomes como Irandhir Santos e José Dumont, destacam-se as performances de José Wilker e Chico Anysio, premiadas naquela ocasião no Rio – Ator Coadjuvante e Menção Especial do Júri, respectivamente – e que se tornaram o último trabalho de ambos, falecidos em 2014 e 2012, a ser lançado. E, se Villar transpirava a virilidade e força nunca adormecidas em Matraga na primeira versão, João Miguel, que também levou o troféu Redentor por sua atuação, mostra-se muito hábil em seu protagonista, cujas risadas de canto de boca fazem transparecer seus pensamentos dúbios para o espectador.
O roteiro escrito por Vinícius junto com Manuela Dias, ex-companheira e ainda parceira em seus trabalhos no cinema, e com a colaboração de sua ex-mulher Vanessa Gerbelli, porém, não encontra brechas, além do texto original, para se aprofundar na construção do personagem. A este anti-herói é dado um caráter heroico, quase messiânico, maior do que no livro e no longa anterior, este mais fincado no paradoxo da essência humana. E se a fidelidade à prosa de Guimarães Rosa é vista em ambos, as passagens do enredo são mais fielmente transcritas no script da recente produção, mas sem a proximidade daquele universo que o clássico de 1965 conseguiu.
E antes que algum preconceito surja pelo fato de Coimbra ser um diretor de novelas – a mais, ele conta com a experiência de dirigir o primeiro segmento de Love Film Festival (2014) –, basta dizer que ele realmente faz uma obra cinematográfica em seu début. Junto com a fotografia de Lula Carvalho, sua direção é muito eficiente em criar um clima de faroeste sertanejo que remete aos clássicos sessentistas de Sergio Leone. O trabalho de reconstituição de época da direção de arte e outros departamentos é igualmente notável.
A questão aqui diz mais respeito ao deslocamento do olhar, exterior ao ambiente retratado e capaz de tornar até as palavras de Rosa artificiais na boca de seus intérpretes em alguns momentos. A música incidental da Orquestra Filarmônica de Praga, especialmente na cena do resgate noturno de um animal atolado, traduz muito esse olhar erudito para o regional do longa contemporâneo, enquanto a antiga trilha assinada por Geraldo Vandré denotava o quanto a obra do Cinema Novo, no seu esmero pela sua quintessência regional, se tornava erudita.
Isso não quer dizer que o filme seja inacessível; pelo contrário, esta é uma produção que busca, sem desespero, sua plateia em um cenário em que, hoje em dia, os espectadores brasileiros sentem-se carentes de ver o coração de seu país retratado nas mais diversas mídias. Ainda é capaz de despertar certa curiosidade no próximo trabalho de Coimbra que será apresentado no Festival do Rio deste ano, A Floresta Que Se Move (2015), em que explora o mundo shakespeariano em sua versão atual e local de Macbeth.
Assim, as comparações feitas até o momento não são de nenhum modo depreciativas e sim uma chamada ao público para dar uma chance ao novo Augusto Matraga, que se esgueira entre o popular e o autoral e conta com uma distribuição reduzida – a questão dos chamados “filmes médios” atualmente no cinema nacional daria por si só uma reflexão que renderia outro texto, ainda mais com o recente e proporcional fenômeno de Que Horas Ela Volta? (2015) na bilheteria. Contudo, é igualmente um convite para que o leitor procure o outro Matraga, cuja excelente adaptação de Roberto Santos foi elogiada pelo próprio Guimarães.