Há um quê de Yasujiro Ozu em Takara – A Noite em que Nadei, o poético nome do filme assinado pelo francês Damien Manivel e o japonês Kohei Igarashi – especialmente por uma simplicidade que extrai muito de um aparente quase nada.
Esse minimalismo se apóia no foco numa única jornada na vida de um menino de 6 anos, Takara Kogawa, protagonista absoluto numa história com não-atores, todos da família Kogawa. Dispensando as palavras e as interações com os adultos, a câmera se ajusta ao ponto de vista do garotinho e parte com ele numa série de pequenas aventuras, numa paisagem coberta pela neve, que condensa imageticamente tanto a amplidão da vida como seus perigos.
Takara acorda de madrugada, no momento em que seu pai parte para o trabalho, escuro ainda. Sem voltar a dormir, começa sua perambulação solitária, desencavando petiscos, explorando os cantos da casa, de cujas janelas se enxerga a caída incessante da neve. Todos dormem, menos o pequeno, entretido no desenho de um peixe, vivendo a metáfora, também, de uma certa solidão da infância e da individualidade única de cada pessoa em seu aqui e agora.
Quando amanhece, Takara está sonolento. Sua irmã o veste para a escola, ele praticamente dormindo. Os dois partem pelo caminho, mas Takara fica para trás, sem ser notado. Ele se desvia para um passeio que parece não ter muito rumo, levando a mochila em que guardou o desenho da noite anterior.
Nessa rota, parece haver um destino, mas ele é atravessado pelos acasos, uma árvore, um riacho no meio dos caminhos cobertos de neve, o encontro de uma mexerica, uma linha de trem, as ruas da cidadezinha. O olhar de Takara percorre tudo com curiosidade, indo em frente por instinto. Lá longe, está o mercado de peixe onde trabalha o pai de Takara.
A câmera e o olhar do menino se irmanam numa interação íntima – como é o céu? Que pássaro é este que está voando? O que há por trás destas janelas? Em que momento é seguro atravessar a rua? Onde é que se pode sentar, descansar e comer o lanche? E se eu latir para os cachorros que latem para mim? O espectador que se dispuser a compartilhar destas experiências entrará na mesma vibração de Takara, com alguma expectativa diante da exposição solitária do menino ao mundo. Mas ele não tem medo, seguindo seus instintos.
Finalmente, a noite maldormida cobra o seu preço, somando-se ao cansaço pela caminhada. Takara procura um canto protegido para dormir, dentro de um carro que tiver a porta aberta. Mais uma vez, o acaso joga seu papel para que Takara encontre o caminho de volta para casa. Nada aconteceu, mas muito aconteceu. Este foi apenas mais um dia, mas não um dia qualquer.
Cinematograficamente, o filme depende muito da elaboração conjunta da fotografia de Wataru Takahashi, da montagem de William Laboury e do trabalho de som de Jérôme Petit e Gen Takahashi – que enfatiza os ruídos que substituem diálogos inexistentes ou inaudíveis, uma opção dos diretores. É um mundo de olhar, de pele, de sensorialidade imediata o que este pequeno filme deflagra, remetendo também às origens do cinema, àqueles curtas mudos com que os irmãos Lumière começaram a mais que centenária jornada da sétima arte.
Takara – a noite em que nadei fez parte da seleção da mostra Horizontes do Festival de Veneza 2017, que é dedicada a filmes com alguma experimentação formal e/ou temática.