Desde que o cinema de Gaspar Noé se tornou famoso, com Irreversível, seu segundo longa, exibido em competição em Cannes/2002, a obra desse cineasta argentino radicado na França se constitui basicamente de choques – ou tentativas disso. Naquele filme, por exemplo, a cabeça de um homem é esmagada por um extintor de incêndio até virar uma espécie de geleia; depois disso, há uma outra cena longa de um estupro – embora, na narrativa, este aconteça antes do ataque com o extintor. Depois vieram Enter the void e Love 3D, um pornô para exibir em cinemas de arte no formato 3D. Há quem compre essa coisa toda – tanto que Clímax ganhou um prêmio na Quinzena dos Realizadores, uma mostra paralela do Festival de Cannes 2018.
Este é, novamente digamos, o filme mais acessível do diretor – o que não quer dizer muito. E sua primeira meia hora talvez engane, parecendo que virá dali algo diferente dos choques gratuitos e do desprezo pela humanidade tão típico de sua obra. Dançarinos jovens – cerca de 20 anos – compondo um grupo sexual e racialmente heterogêneo ensaia uma coreografia numa espécie de antigo salão de festas decadente e abandonado.
As personagens são apresentadas no começo do filme – que, de maneira irreversível, começa com os créditos finais e um letreiro que diz “Um filme francês e orgulhoso disso”. Quando encontramos esses e essas jovens, a dança está num estágio avançado já. É um momento que pulsa com energia numa coreografia de uma batida cadente e precisa. Chega a ser sedutor, por isso é uma pena que tudo isso se dissolva numa sangria batizada com LSD, por algum deles – não se sabe, até a cena final, quem.
Depois de muito dançarem e beberem, os efeitos da droga, que ninguém sabia estar na bebida, começam a surgir e essas pessoas se tornam violentas. Primeiro culpam um jovem muçulmano de ter batizado o drinque – já que ele não bebeu -, e o jogam para fora do salão na neve, usando apenas um mero agasalho. Dado o que vem depois, talvez a neve seja destino melhor do que a companhia dos colegas.
As desgraças acontecem quase de forma aleatória: os cabelos e as costas de uma jovem pegam fogo; uma mulher espanca outra que não bebeu da sangria porque está grávida; um irmão e uma irmã muito próximos, enlouquecidos, tentam consumar uma relação sexual incestuosa; rapazes tentam desenhar uma suástica com batom na testa de outro, jurando que vão fazer uma circuncisão nele com uma faca; uma mãe (enlouquecida no LSD) tenta salvar seu filho (que pode ou não ter bebido da sangria – aparentemente bebeu), trancando-o na casa de força do salão – certamente ela não ganhará o prêmio de mãe do ano.
O elenco é composto de jovens que sabem dançar, mas são ruins de atuação. É verdade que o fato de estarem numa obra de Noé ajuda pouco nesse quesito. A única conhecida aqui é a argelina Sofia Boutella – cujo pior filme do currículo era, até então, a versão de 2017 de A múmia. Visualmente, o longa, cuja fotografia é assinada por Benoît Debie, sucumbe às pirotécnicas técnico-estéticas típicas de Noé – então, tome cenas com a câmera dando piruetas, com as imagens de cabeça para baixo e afins.
Talvez, em algum lugar de Climax, exista enterrada uma alegoria sobre o estado das coisas na França – três cortinas imensas com as cores da bandeira do país estão ao fundo da picape do DJ. O primeiro a ser apontado como culpado é um jovem muçulmano, e existe alguma tensão racial ali no grupo – boa parte dos dançarinos e das dançarinas são negros e negras. Mas isso tudo é muito dissolvido, e, digamos mais uma vez, que não vale o esforço de decodificar o filme e seu comentário social. O que fica claro, sem precisar de muito esforço para notar, é o desprezo de Noé pela humanidade – em especial, pela parcela feminina da humanidade.