17/04/2025

Na cidadezinha de Bacurau, perdida no sertão, num futuro próximo, os moradores estão sendo amedrontados pelos ataques de misteriosos atiradores. O prefeito local não resolve nem essa, nem outras mazelas, como a falta d'água e a distribuição de remédios, que ele manipula. Diante de tudo, a comunidade organiza a própria resistência.

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Vencedor do Prêmio do Júri no Festival de Cannes, inédito para o cinema brasileiro, Bacurau é um filme singular. Revisita gêneros, embaralha referências e fala da inquietação de uma comunidade de gente trabalhadora, assediada por matadores, políticos desonestos e toda série de mazelas, mas que preserva uma integridade na sua união e na resistência. Em Cannes, o prêmio foi dividido com o drama francês Os Miseráveis, de Ladj Ly.
 
Nesta distopia ambientada no sertão pernambucano num indefinido futuro próximo, mesclam-se drama social, faroeste, suspense, terror e ficção científica, tudo isso enraizado em abundantes referências brasileiras, aos filmes de cangaço e ao Cinema Novo, inclusive na música (com direito a citação ao compositor Sergio Ricardo).
 
Por todos estes sinais que embaralha, Bacurau se apresenta como uma crônica do desconforto, como um filme que pretende desafiar o espectador a se entregar ao que não decifra e seguir junto - o que é a mais legítima aspiração de qualquer cineasta. Não é uma obra de certezas, narrativas ou não, este relato da saga da cidadezinha de Bacurau, assolada por uma série de tragédias: falta d’água, desabastecimento de alimentos e remédios, abandono e chantagem do prefeito desonesto, ataques de atiradores desconhecidos. Diante disso, a comunidade, diversa e plural em todos os sentidos, se mobiliza para resistir, tendo o mesmo peso a figura de um professor, Plínio (Wilson Rabelo), de um ex-matador, “Pacote” (Thomas Aquino), uma neo-cangaceira trans, Lunga (Silvero Pereira), uma enfermeira,Teresa (Barbara Colen), e a médica local Domingas (Sonia Braga)- desta vez, num papel menor do que em Aquarius, mas igualmente marcante, num filme mais impregado de coletivo. A sequência em que ela encara Michael (Udo Kier), o líder dos matadores forasteiros, é de antologia em sua estranheza, seu humor ferino e força cinematográfica, neste duelo de dois grandes atores.
 
Uma segunda visita a Bacurau, que abriu fora de competição o 47o Festival de Gramado, permitiu uma apreensão maior dos inúmeros significados que este filme tem a propor - independentemente, até, das intenções de seus atores.
 
Neste segundo olhar, saltou muito mais aos olhos a adequação da tosquice alucinada dos fascistas atiradores - que, estranhamente, parecem cada vez mais reais diante deste momento instável do Brasil e do mundo. 
 
Também cresceu de sentido a posição do museu e da escola como fortalezas diante da ameaça de destruição que se apresenta à comunidade de Bacurau. Mas paro por aqui. Bacurau é o tipo de filme que deve rebater na pele e no entendimento de cada espectador e reverberar seus sentidos nas múltiplas direções que ele toma. Nossa jornada como comunidade assediada pela irracionalidade e a truculência, afinal, está só começando, mas descobrimos que podemos contar com as Domingas, Plínios, Teresas, Pacotes e Lungas que vivem em nós como aliados no turbilhão. 
 
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