07/02/2025
Drama

Tio Vanya em Nova York

Na Nova York contemporânea, atores se dirigem a um teatro em ruínas. Sem cenário ou figurinos especiais, interpretam "Tio Vânia", de Anton Tchecov, trazendo à cena os dilemas de Vânia e sua sobrinha Sonya quando são visitados pelo pai dela, que pretende vender a propriedade rural onde eles passaram toda a sua vida.

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Despojamento e intensidade são as marcas do russo Anton Tchecov (1860-1904), o mestre do conto e do teatro capaz de penetrar como poucos a natureza e a vida humanas. Fiel aos seus princípios, o diretor francês Louis Malle (1932-1995) compôs neste que seria seu último filme uma das transposições mais autênticas e inspiradas da conhecida peça Tio Vânia (1897). Ambientando a história na Nova York contemporânea, Malle acompanha um grupo de atores que se prepara para encená-la num teatro abandonado, em ruínas que mostram que algum dia já foi monumental: o New Amsterdam Theatre.
 
Neste cenário precário, dispensando figurinos ou objetos de época, os atores se transformam organicamente nos desiludidos personagens do século XIX, vibrando sua melancolia com uma empatia vívida e delicada. A peça começa sem aviso, introduzindo os espectadores nos dramas de uma família, moradora de uma fazenda, e alguns agregados. São eles Vanya (Wallace Shawn), sua sobrinha Sonya (Brooke Smith) e a avó (Lynn Cohen), naquele momento hospedando o casal formado pelo professor Serebriakov (George Gaynes) e sua segunda mulher, Yelena (Julianne Moore). A tensão é imensa. O velho professor, um ex-cunhado de Vanya (foi casado com sua irmã, que morreu), é, há anos, um verdadeiro sanguessuga dos esforços de Vanya e Sonya, que há anos trabalham como loucos para garantir-lhe uma renda. Agora, ele veio ficar ali por uns tempos, alterando drasticamente sua rotina, portando-se como um tirano mimado e com planos de vender a propriedade.
 
Todos os ressentimentos mantidos sob controle quando o professor vivia distante afloram à pele especialmente de Vanya, que, aos 47 anos, sente que o melhor da vida já passou. Complicando a tensão, Vanya sente-se atraído por Yelena, a jovem mulher do professor. Em torno da belíssima mas também ociosa Yelena gravita igualmente o dr. Astrov (Larry Pine), o médico local, que é o objeto secreto do amor de Sonya, tímida demais para declarar-se. 
 
Astrov, aliás, é um dos personagens mais notáveis aqui. Interessado na preservação das florestas, ele se mostra um ecologista avant la lettre, mostrando como Tchecov, em sua poderosa e intuitiva percepção, foi capaz de detetar sinais de tantas tendências que se materializariam depois. 
 
Como sempre em Tchecov, a pretensa simplicidade é sempre uma aparência. Neste feixe de situações aparentemente banais, a maestria de Tchecov arma num arabesco cada vez mais denso, que coloca em primeiro plano sentimentos reprimidos, sempre a um passo da explosão. A poesia de Tchecov também se expressa na composição de cada uma destas personalidades com todos os tons de sua humanidade, de modo que a cada um se dá chance de se explicar. A precisão do autor para entrar no cerne da natureza humana é transparente na medida em que nos esquecemos logo de que se trata de uma peça ambientada há mais de 120 anos atrás - e isso é mérito também deste refinado elenco, da adaptação do texto por David Mamet e do roteiro, assinado por Malle e pelo ator e diretor francês André Gregory (que atuou sob a direção do francês no criativo Meu Jantar com André, ao lado de Wallace Shawn)..

Diretor conhecido por filmes de assinatura inconfundível, como Lacombe, Lucien (1974), Adeus, meninos (1987) e Loucuras de uma primavera (1990), capazes de ler através das entrelinhas das épocas que retratam, Malle registra nesta sua delicada obra de despedida a mesma marca de integridade que alimentou uma obra quase impecável. 

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