Como no premiado longa Arábia, em que Uchoa dividiu a direção com João Dumans (aqui seu parceiro na montagem), as filmagens ocorreram em Contagem (MG), de onde são originários os diretores, cenário de uma contundente denúncia sobre o efeito desagregador da violência policial numa comunidade pobre.
O relato de Rafael ocupa boa parte da narrativa. Filmado num ambiente escuro, como à beira de uma fogueira ancestral, deixa-se todo o espaço em cena para suas palavras, que vão desenhando aos poucos um inacreditável mergulho no inferno. Um relato de acontecimentos nada incomuns, infelizmente repetidos em todas as quebradas, todas as periferias do país, unindo as pontas de fatores como pobreza, desigualdade, abuso policial e uma vertiginosa queda no mundo da dependência química.
É ousada esta opção do diretor por fechar a câmera neste rosto ainda jovem, batido por vicissitudes sem conta, seguindo uma voz que denota o cansaço, o sofrimento mas também o sentido da injustiça. E é nesta narrativa infernal que, como uma Scherazade às avessas, Rafael nos hipnotiza pela solicitação de alguma empatia no meio de tanto horror. Só mais adiante se revela que Rafael tem um interlocutor, Wederson - até ali, nos sentíamos seus únicos confidentes, estreitando o fio de uma cumplicidade humana. E Wederson também tem uma história para contar.
A aparente simplicidade do filme não resiste a uma simples análise. Desde os primeiros momentos, Uchôa coloca em funcionamento mecanismos de reencenação, de resto inevitáveis para sustentar um testemunho deste teor. A segunda engrenagem é este hipnótico depoimento de Rafael e sua saga trágica. O terceiro ato rompe com os dois recursos, desencadeando a performance de um jogo vivo-morto, uma simbólica resposta coletiva a tudo o que se viu antes, um jogo de cena de alto potencial dramático, que dá um fecho contundente a um dos melhores filmes feitos sobre a sistemática guerra declarada da polícia contra os pobres.