Não é segredo que a própria intenção de Tarkovsky ao realizar o filme, corroteirizado por Andrei Konchalovsky, é menos esclarecer a suposta biografia do monge e muito mais discutir os dilemas e a ética de todo artista - este um tema que ocupou toda a sua vida, sua obra cinematográfica e seus escritos, como o luminoso Esculpir o Tempo, em que ele discorre sobre tudo o que acredita essencial para compor uma obra de arte.
No século XV, o monge Andrei Rublev é conhecido por seu talento e convidado a pintar ícones numa catedral. Mas ele vive num tempo de guerras e conflitos, que mergulham sua vida em várias experiências trágicas.
- Por Neusa Barbosa
- 31/08/2020
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Embora se trate da cinebiografia - muito livre e poética - de um monge e pintor de ícones bizantinos do século XV, em Andrei Rublev, de Andrei Tarkovsky (1932-1986), o que menos se verá é seu protagonista (Anatoly Solonitsyn) pintando. Este é apenas o primeiro sinal inequívoco do estilo do celebrado diretor russo, que fugia do óbvio tal como os monges como Rublev fugiam das tentações.
O que se verá no filme é muito mais a época do monge-pintor, num vívido retrato sem retoques de uma Rússia medieval e imperial, assolada pela fome, a miséria e o misticismo exacerbado, tanto por parte da Igreja Ortodoxa como dos ousados pagãos que realizavam seus rituais permissivos, que podem lembrar as comunidades hippies dos anos 1960, remetendo, aliás, à época em que o filme foi realizado, 1966.
Sofrendo objeções tanto das autoridades soviéticas quanto de nacionalistas, o filme só chegou ao Festival de Cannes três anos depois, onde obteve o prêmio da Federação Internacional dos Críticos (Fipresci), só recebendo a devida distribuição internacional a partir de 1973. Esta demora foi uma cabal comprovação do incômodo que esta obra magistral provocou por seu retrato respeitoso do espiritualismo cristão, sua crua exposição do passado selvagem da velha Rússia e sua forma ousada, o que provocou vários cortes e seu lançamento em inúmeras versões antes daquela que circula hoje, com 205 minutos, a mais fiel à visão original do próprio Tarkovsky.
A total distância de uma cinebiografia convencional começa já pela luminosa sequência inicial, que mostra a tentativa de vôo num balão improvisado, em pleno século XV. Uma cena que situa um dos acontecimentos marcantes do período muito mais do que estabelece uma relação direta com Rublev, um monge talentoso e modesto que procurava manter seus pés bem plantados no chão.
Ao lado de Kirill (Ivan Lapidov) e Danil (Nikolay Grinko), Rublev compõe um trio de monges, moradores do mosteiro de Andronnikov, levando uma vida muito despojada e pobre. Todos os três pintores dos ícones bizantinos que adornam as igrejas, é Andrei Rublev quem se destaca por seu talento e é convidado por um velho artista, Teófanes, o grego (Nikolay Sergeev), a integrar o grupo de pintores que cobrirá as paredes da Igreja da Assunção. Um convite que provoca a separação do trio de monges e coloca Rublev pelas estradas da Rússia.
Através dos olhos do monge-artista, passam-se cenas de fanatismo religioso, crucificações, apresentações de atores mambembes, deslocamentos de pobres camponeses, manobras de nobres traiçoeiros e a violência dos invasores tártaros. Cada plano é uma pintura, cada rosto, um ícone, num filme em que a câmera (de Vadim Yusov) não procura o embelezamento, mas o naturalismo, ainda que das imagens mais chocantes. Tarkovsky expõe seus espectadores, tanto quanto o seu protagonista, à essência feroz da vida, num mergulho em carne viva do qual Rublev emergirá mais maduro, sofrendo na pele todas as dores.
Neste longo percurso do monge pela estrada, fugindo da fome, da violência e da guerra como qualquer outro pequeno cidadão desprovido de poderes ou riqueza, a obra compõe o cenário que se ofereceu à sua percepção e suas emoções. Envolvido por tantos acontecimentos dramáticos, ele não poderá preservar-se à parte, simplesmente meditando sobre o bem e o mal, até porque Rublev é um ser dotado de curiosidade e empatia singulares - nítidas na expressão do rosto de Anatoly Solonitsyn, o ator-fetiche assumido do diretor, presente em vários de seus filmes (Solaris, O Espelho, Stalker).
Se todo esse turbilhão de seu tempo não o leva a tornar-se omisso - como quando defende uma jovem muda -, ele também experimenta suas próprias crises artísticas. Apesar de ordenado a isso, recusa-se a pintar demônios crueis numa cena do Juízo Final numa igreja porque “não quer assustar as pessoas”. Entre os que amam e os que odeiam, ele prefere calar-se e passa realmente meses em total silêncio.
Mas seus olhos observam tudo e é assim que ele testemunha de perto o esforço insano de um jovem adolescente, Boris (Nikolay Burlyaev, o menino de A Infância de Ivan), para liderar a construção de um sino - uma tarefa que parece inviável, mas denota a ousadia e determinação do menino, finalmente uma inspiração para Rublev, sem que com isso ele altere, é certo, sua personalidade discreta.
Filmado quase inteiramente em sóbrio preto-e-branco, o filme incorpora cores a partir dos 186 minutos, quando finalmente mostra algumas das pinturas do verdadeiro Rublev que sobreviveram a todos estes séculos de conflitos e guerras.