Uma densa sensação de medo, ameaça e vulnerabilidade percorre os enxutos 74 minutos deste singular filme em que o diretor Spike Lee recria a peça escrita em 2018 pela dramaturga Antoinette Nwandu. Apenas dois personagens estão no palco, no centro da cena, num cenário despojado como suas vidas, como seus sonhos esfarrapados. Eles são os jovens Moses (Jon Michael Hill) e Kitch (Julian Parker), que têm por endereço um dos cruzamentos mais violentos de Chicago, a esquina entre a rua 64 e rua Dr. Martin Luther King.
Sem teto, sem família, eles colecionam lembranças dos muitos parentes, amigos e conhecidos mortos pela polícia - que tem duas entradas na peça. O eventual som de tiros ao longe é a senha para atirá-los ao chão em menos de um segundo. Eles vivem na pele a sensação muito real de que a carne preta é a mais barata do mercado, como diz uma canção brasileira.
Nenhum segredo que se trata da reapropriação de um clássico teatral de Samuel Beckett, Esperando Godot, com a diferença de que Moses e Kitch não esperam alguém de fora que os venha salvar. Seu sonho é uma Terra Prometida que só pode ficar longe dali. Sua expectativa é um impulso que os leve a atravessar uma fronteira invisível, mas nada imaginária, que os conduza a esse lugar onde possam ter lar, comida, cidadania, deixando de ser alvos na mira do policial Ossifer (Blake DeLong) - que, quando aparece, repete um ritual opressivo de humilhação e poder que mantém uma História até aqui imutável.
Valendo-se dos recursos do cinema, como os closes e uma montagem enxuta, Lee coloca seus espectadores dentro da cena, como que ocupando aquele espaço íntimo em que Moses e Kitch trocam seus diálogos duros, cômicos, trágicos, expressando a irmandade possível de dois seres a quem toda dignidade é negada.
Mais de uma vez, a fantasia interfere, materializando metáforas que cada espectador pode reconhecer. Um exemplo é a intempestiva aparição de um homem branco (Ryan Hallahan), impecavelmente vestido com um terno branco e um chapéu à la anos 1950, trazendo uma inusitada cesta de piquenique. Apesar do linguajar refinado e dos modos contidos, sua presença é portadora de outro tipo de desconfiança. O que faz ali aquele invasor de um espaço desvalorizado?
O recurso dramático desta intrusão fornece oportunidade para que o filme discuta as contradições da tensão racial na América. Mesmo trajando-se como um viajante no tempo - uma simbologia com várias leituras -, há elementos no convívio entre este homem e os dois garotos que revelam a persistência de um diálogo nunca realmente pacificado. E em que os participantes não entram na arena da palavra em igualdade de condições.
Hill e Parker mostram-se protagonistas capazes de manter a energia rolando em cena sem oscilações, vibrando em cada olhar, cada gesto, cada palavra com a autenticidade precisa de uma humanidade em perigo - e que só pode mesmo sonhar com liberdade em sua versão fantasiosa de um paraíso que a religião os fez imaginar, mas não pôde entregar.
O final, impactante, devolve a cena a uma inquietante contemporaneidade. Se o texto foi escrito no calor da indignação pela morte do garoto Travyon Martin (em 2012), não faltaram outros mortos a seguir-se a ele, como George Floyd, em 2020, nesta incessante carnificina da população negra que envergonha tanto os EUA - aliás, também o Brasil. Pass Over, um nome que remete à Páscoa judaica e à saída dos judeus do Egito, pode ser livremente traduzida também como “travessia”, uma travessia incompleta, inconclusa e urgente como nunca.
A inserção de imagens do público que se dirige à encenação da peça, no teatro Steppenwolf de Chicago, no começo, os closes de seus rostos em momentos cruciais da montagem e as faces de outros personagens da cidade, nas ruas, rompem, igualmente, a contenção do espaço, desafiando a fronteira da invisibilidade e da marginalização destas pessoas para quem o que a peça diz é um doloroso presente.