08/09/2024
Drama Distopia

Medida Provisória

No Brasil de um futuro próximo, o governo federal decreta uma medida provisória que obriga todos os afrodescendentes a mudarem-se para a África, criando um Ministério da Devolução. Muitos resistem, entre eles, o advogado Antonio, sua mulher, a médica Capitu, e o primo, o jornalista André.

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Lázaro Ramos estreia na direção com disposição guerreira, numa história que não quer deixar ninguém na zona de conforto. A partir da peça Namíbia, de Aldri Anunciação, ele desenvolve uma distopia, ambientada num Brasil de um futuro bem próximo, em que o governo aprova uma medida provisória que obriga todos os afrodescendentes à deportação compulsória para a África. 
 
Levando às raias do absurdo um racismo explícito, brancos como a zelosa funcionária pública Isabel (Adriana Esteves) e a vizinha incomodada pela presença de moradores negros em seu prédio, d. Izildinha (Renata Sorrah), se dispõem, a primeira, à caça, a segunda, à delação - atitudes que permitem uma apropriada comparação com o regime nazista em relação aos judeus. A metáfora cabe. 
 
A esperada resistência de muitos, como o advogado Antonio (Alfred Enoch), sua mulher, a médica Capitu (Taís Araújo), e o primo, o jornalista André (Seu Jorge), se cria símbolos, também acirra a repressão - que não se acanha em, rapidamente, se dispor a eliminar fisicamente quem não se voluntariar a uma nova diáspora, desta vez de direção inversa.
 
Outro núcleo de resistência articula-se num “afrobunker”, que alguém chama de novo quilombo, apenas para ser rejeitado pelo líder rebelde interpretado por Emicida (estreante como ator) - “quilombo é muito século 18”. Mas será esse o máximo de humor, na verdade, ironia permitida numa história tensa, que se articula em diversas sequências violentas, criando novas camadas de uma tensão crescente.
 
Valendo-se da simplificação estrutural permitida pelos filmes de gênero, Lázaro Ramos consegue compor esse universo de diluição coletiva permitindo a alguns personagens se expressarem fora de uma chave maniqueísta - caso do trio Antonio, Capitu e André, os herois deste conto fantástico sombrio inspirado nas maquinações do racismo, levado às últimas consequências pelo delírio burocrático/judiciário/policial autoritário. 
 
A Adriana Esteves e Renata Sorrah corresponde a encarnação do estereótipo do branco racista, idiotizado e convencido da lisura do próprio preconceito - algo não tão difícil de encontrar por aí, na vida real ou nas redes sociais. Menos do que procurar realismo, no entanto, Ramos investe em criar um dispositivo de reflexão para o público se olhar neste espelho distorcido, que semeia um incômodo mas não se afasta de algum tipo de verdade, reconhecível em muitos pontos de contato com o mundo em que vivemos. 
 
Uma das proximidades mais inquietantes é a do governo do filme, capaz de criar um Ministério da Devolução para deportar os afrodescendentes, com o governo atual do Brasil, viciado em governas por meio de medidas provisórias e empenhado em desmontar políticas públicas, com particular predileção para atentar contra a igualdade racial e a proteção a quilombolas e indígenas. Qualquer semelhança, aqui, não é mera coincidência.

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