15/01/2025
Drama

O pequeno corpo

1900. Numa pequena aldeia de pescadores, Ágata deu à luz, mas sua filha nasceu morta. Quando o padre se recusa a batizar a menina, recorrendo ao dogma de que ela estaria destinada ao limbo, Ágata fica sabendo de um santuário clandestino. Lá, haveria uma eremita capaz de ressuscitar brevemente o bebê, apenas para que pudesse ser batizado. Ela parte sozinha, com o corpo da filha, em busca desse lugar.

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 A primeira sensação sobre o filme da estreante Laura Samani é a impressionante segurança que esta jovem diretora demonstra para encenar seu material, extraindo o máximo potencial de uma história antiga que projeta seus ecos no presente, por seu mergulho na condição humana, nas verdades básicas da vida e da condição humana.

Contando com um elenco majoritariamente formado de não-atores - inclusive a carismática protagonista, Celeste Cescutti -, e recorrendo aos dialetos friulano e vêneto, a diretora compõe um ambiente em que a ancestralidade e a tradição estão inscritas nos rostos e nos corpos, antes dos figurinos e cenários. Num enredo ambientado vagamente em 1900, o filme acompanha a jornada de Ágata (Celeste Cescutti), uma jovem mãe que deu à luz uma criança natimorta e não se conforma com a impossibilidade de batizá-la e dar-lhe um nome. Segundo as normas rígidas da religião católica, as almas de crianças mortas estão destinadas ao limbo e isso atormenta a jovem mãe ao desespero.

A informação de que, em algum lugar incerto, há um santuário clandestino, que tem a fama de sediar o milagre de ressuscitar brevemente os natimortos a fim de que possam ser redimidos, tira o sossego de Ágata. Sem contar com o apoio do marido, ela decide apossar-se do corpo da filha e procurar sozinha esse lugar, que ela nem tem certeza se existe, que não se sabe onde fica.

Atravessando o rio num barco, ela chega a uma região desconhecida com seu pequeno corpinho escondido numa caixa. E lá conhece o misterioso Lince (Ondina Quadri), que se oferece como seu guia. Para essa mulher sozinha e frágil, porém, há muitos perigos no caminho, que a ambiguidade de Lince a princípio não irá remover - ao contrário, ele parece também ser uma ameaça para ela.

No bojo dos incidentes que permeiam a jornada de Ágata e Lince, porém, o enredo reúne uma série de situações que permitem retratar um tempo e lugar em que as mulheres são cercadas de lendas, preconceitos e abusos. Mas tanto uma quanto o outro são seres acostumados a arrancar a própria sobrevivência do pouco que a natureza oferece e o rumo dos acontecimentos leva-os a compartilhar saberes e também uma canção - um dos muitos momentos de beleza de um filme edificado na pedra, no instinto, na clareza de uma vida bruta tirada do chão.

A obsessão de Ágata por encontrar o santuário, no entanto, é mais visceral do que Lince pode entender e, em algum momento, ambos terão um entendimento diferente sobre prosseguir. A procura de Lince é mais pela vida e ele também esconde seu segredo. Ágata, por seu lado, tem uma missão de vida ou morte pela filha, um encargo sagrado, que transcende até o próprio cuidado, a própria sobrevivência. Neste sentido, ela é uma espécie de santa, que se santifica quanto mais se desvia dos postulados da religião estabelecida. E se o filme não aspira a fazer um elogio da fé, sua sequência final remete a uma espécie de elevação. Que belas e significativas imagens, aliás, na fotografia de Mitja Licen, compõem todas as sequências deste filme arrebatador. 

Leia a entrevista com a diretora Laura Samani

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