21/05/2024

Ana Rieper resgata o universo do Clube da Esquina em documentário


Não foi proposital, mas, aos poucos, a cineasta Ana Rieper parece especializar-se em documentários sobre música. Entre seus filmes sobre o tema está Vou Rifar Meu Coração, documentário sobre o universo da música brega no Brasil. Seu novo filme,
Nada Será Como Antes – A Música do Clube da Esquina, como indica o título, resgata a história do disco de 1972, que a própria cineasta define como “mítico”.

Parte do projeto Sessão Vitrine, estreando em mais de 20 cidades com ingressos a preços promocionais, o longa é uma viagem no tempo e espaço, trazendo para o presente histórias marcantes e entrevistas com os participantes do Clube da Esquina, como Milton Nascimento, Lô Borges, Márcio Borges e Beto Guedes. Fugindo das amarras de um filme biográfico, Ana encontra espaço para criar um documentário quase impressionista, que olha para o passado e reflete sobre o presente do Brasil.

Abaixo, a entrevista da diretora ao Cineweb.


Como começou o projeto?

Esse filme nasceu de um reencontro meu com um grande amigo que é filho do Márcio Borges, afilhado do Lô, personagem do Clube da Esquina, que é o José Roberto Borges. Ele um produtor, eu uma documentarista, amigos de juventude. Um filme sobre amizade que parte de uma amizade.


Qual sua ligação com o Clube da Esquina?

Eu tinha e tenho uma afinidade muito grande com filmes que tratam de música, está virando quase uma especialidade minha, algo que amo e que me constitui. E sempre fui muito apaixonada pelo Clube da Esquina, esse disco mítico para a música brasileira.
Mas mesmo trabalhando com a realização de documentários musicais, minha relação com o Clube da Esquina sempre foi de fã, de público. Assim como para muita gente, algumas músicas desse álbum e também de outros álbuns de artistas ligados ao Clube, como Beto Guedes e Toninho Horta, contam uma parte da minha vida. São músicas que nos transportam para dentro da nossa memória, do nosso imaginário, da nossa história de vida, uma história afetiva.

Eu comecei pelo Clube da Esquina 2, aquele álbum duplo magnífico. Ali pra mim se abriu um portal, de caminhar por uma música que tem algo inexplicável, onírico, ligado ao inconsciente. Eu tinha 17 anos de idade.


Por quanto tempo você filmou?

As filmagens do Nada Será Como Antes foram muito harmoniosas, parece que tinha algo que fluía com uma facilidade muito grande. Uma experiência nova pra mim, confesso. E muito prazerosa. As filmagens duraram duas semanas. Parece incrível que tudo aquilo tenha acontecido em tão pouco tempo.


E como foi a pesquisa do material de arquivo?

A pesquisa de arquivo foi feita pelo Antônio Venâncio, que trouxe um material lindíssimo, especialmente gravações da época de canais de TV estrangeiros, principalmente europeus. Vieram também uns shows muito bonitos, como um show nos anos 70 na concha acústica da USP e o festival de música de Três Pontas, um evento que mereceria um filme à parte. Utilizamos parte desse material no corte final; em um momento da montagem entendemos que as performances e cenas do presente ganharam uma força muito grande no filme.

Outra parte do material de arquivo veio durante a edição, que são os filmes, principalmente os mineiros, realizados no Brasil nos anos 70. Nós buscamos, através desses filmes, traduzir um espírito de época. E evocar, ou reforçar essa narrativa pelas imagens. O pessoal do Clube da Esquina era muito ligado ao cinema e esse elemento foi incorporado ao nosso filme.


O filme tem a grande qualidade de, ao mesmo tempo, resgatar a história do pessoal, especialmente para novas gerações que eventualmente não os conheçam, mas, também, deve falar ao coração dos fãs. Como foi encontrar essa linguagem, sem criar algo excessivamente didático, mas que também não deixe de fora quem não conhecia o pessoal?

O afastamento de uma perspectiva biográfica e cronológica, naturalmente mais ligada aos fatos, às histórias, foi desde o início uma das condutas fundamentais pra construir o filme. Por outro lado, não queríamos deixar de fora essas histórias tão afetuosas, tão poéticas, como o primeiro encontro de Lô e Beto Guedes no centro de BH em cima de um patinete, os dois com 10 anos de idade. Entre tantos outros “causos”.

Pra dar conta desse momento, sem perder a essência que queríamos para o filme, que era falar sobre a música e a partir da música, desenhamos três atos na montagem. O primeiro, que fala dessa coisa mais familiar, dos encontros, das histórias; uma segunda e fundamental parte que aborda a musicalidade, as referências, as construções das músicas, a forma de fazer arranjos, compor e gravar; e um terceiro e último ato que fala sobre a Minas Gerais que tem dentro dessa música.

De forma geral, as ideias que nortearam o filme nesse caminho de encontrar uma linguagem própria foram uma construção de sentido pelas imagens; a estruturação de cenas e conteúdos a partir de cada música; as filmagens, sempre que possível, de encontros entre esses amigos; os artistas e seus instrumentos como forma de estruturar discursos. É um filme em que a palavra está com a música.


Como você mesma diz na sua nota, o Clube da Esquina não fazia apenas música, naquele momento, eles também faziam política. Como foi trazer esse elemento tão forte para o filme? Especialmente no momento em que vivemos.

Inevitável, aliás, desejável falar sobre política em relação ao Clube da Esquina. Foi um movimento musical que nasceu, nas palavras do Márcio Borges, do cinema e da política. É daí que vem essa música. A filmagem no Colégio Estadual Central, em Belo Horizonte, onde essa turma toda estudou, onde a presidente Dilma Roussef estudou nessa mesma época, foi uma sugestão do Márcio Borges [letrista e irmão de Lô], imediatamente aceita e incorporada no nosso plano de filmagem. Aquele foi um espaço de criação da identidade daqueles meninos. Quem não era aluno, como Fernando Brant e Milton Nascimento, frequentava aquele espaço. E se tornaram adultos no exercício da luta política. Vale lembrar que era a década de 70, fase mais dura da ditadura civil militar no Brasil.

E foi muito bonita essa filmagem, porque ao mesmo tempo em que esses veteranos se encontravam lá para a nossa filmagem, do lado de fora do auditório onde filmamos, a molecada jovem seguia esse mesmo movimento. Um espaço muito interessante.

Na sequência da música Para Lennon e McCartney trazemos também imagens das revoltas populares da América do Sul dos últimos anos, como forma de reforçar no presente aquilo sobre o que a música desse pessoal estava dizendo há mais de 50 anos.


O que você descobriu sobre eles fazendo o filme?

Descobri que são pessoas adoráveis, que são muito amigos até hoje, que tem um amor jovial entre esses artistas que permanece. Um grande prazer e muito inspirador ver que personalidades tão grandes da nossa música guardam uma vida até hoje marcada por um desejo de liberdade e um amor à arte, maior que qualquer show business. O Lô Borges, por exemplo, eu arriscaria dizer que é um ser de música. Tem uma produtividade impressionante até hoje e vive pra música. É uma forma de estar no mundo que vem da música e chega nela, como o lugar de existir. Muito bonito. Eu sou meio hippie, meus amigos sabem, e nesse ponto me identifico demais com o pessoal do Clube da Esquina.


Como você acha que o filme dialoga com o Brasil do presente?

É uma música que não envelhece. Eu vejo os jovens aqui de casa, com 16, 17, 18 anos, super fãs, tocando Clube da Esquina em suas bandas, ouvindo esse som, se identificando muito com esse mundo musical. É uma sonoridade e uma poesia que são atemporais e que têm um diálogo muito forte com a juventude. Vejo uma semelhança muito grande com os Beatles, não à toa uma das maiores referências da “ala jovem” do Clube da Esquina.