Marcelo Rubens Paiva resgata luta de sua mãe em “Ainda Estou Aqui”
- Por Neusa Barbosa
- 05/11/2024
- Tempo de leitura 15 minutos
Marcelo Rubens Paiva tem feito de sua vida a matéria-prima de sua literatura. Foi assim em "Feliz Ano Velho" (1982), em que ele contava parte da história de sua família e o acidente que o deixou tetraplégico. "Ainda Estou Aqui", publicado em 2015 e que acaba de virar filme pelas mãos de Walter Salles, focaliza a figura essencial de sua mãe, Eunice Paiva, uma advogada que tornou sua vida uma jornada de militância social e não só por conta do desaparecimento de seu marido, o ex-deputado Rubens Paiva, em 1971, nas mãos da repressão da ditadura militar.
Em "Ainda Estou Aqui", o livro, seu filho Marcelo retorna às memórias familiares num momento em que a brava guerreira Eunice manifestava os primeiros sinais do Alzheimer - uma ironia trágica na vida de alguém que tanto lutou para que não fossem esquecidas as grandes questões do País, como a liberdade e os direitos indígenas. O filme, por sua vez, focaliza a história da família Paiva, antes e depois do desaparecimento de Rubens (Selton Mello), quando cresce a figura de Eunice (Fernanda Torres), que nas décadas seguintes, deve cuidar sozinha dos cinco filhos - sem dispor sequer de um atestado de óbito, por muitos anos, que lhe permitisse tomar posse dos recursos financeiros deixados pelo marido.
Presente em Veneza, onde o filme venceu um prêmio de roteiro, iniciando um percurso que o tornou o representante do Brasil na tentativa de uma indicação ao Oscar, Marcelo me concedeu esta entrevista, da qual também participou a jornalista Janaina Pereira e a irmã de Marcelo, Ana Lúcia. O filme estreia nos cinemas brasileiros neste dia 7 de novembro.
Cineweb - Este livro é extremamente pessoal, mas na tela ele ganha uma dimensão muito maior. Você imaginou isso? E que um dia ele viraria um filme?
Marcelo - Posso até parecer blasé, mas eu nunca penso em resultado final, no que pode acontecer. Até porque já vi adaptações de coisas minhas que nunca imaginei que fossem possíveis e esta é uma. Porque tem muitos planos temporais ali. Tem década de 60, década de 70, década de 80, década de 90. Tem 2014, tem 2018. São muitos planos temporais. Eu na verdade estava querendo escrever meu livro. Não o preparei para ser adaptado ao cinema, nem é obrigação do escritor. Sei que há escritores que fazem isso. E há livros muito mais fáceis de ser adaptados. Neste caso, o autor não pode pensar no resultado final de uma adaptação cinematográfica. Ela vem com o talento do diretor que aparecer. E apareceu para mim o maior cineasta que eu conheço, como disse o Selton Mello, um diretor clássico, que demorou nove anos para fazer um filme e que era amigo da família.
Cineweb -Tem um olhar pessoal dele também.
Marcelo - Sim. Ele conheceu a família, conheceu a casa, conheceu minha mãe, meu pai, me conheceu pequeno. Conheceu minha irmã, ele saía com a minha irmã, eles eram uma turma. E o pai dele teve uma trajetória semelhante à do meu pai. Os dois foram exilados em 1964. O pai dele foi ministro do João Goulart, foi deputado do partido do João Goulart. Eles foram cassados no mesmo período. Ambos foram exilados para a França. Meu pai voltou. O pai do Walter ficou mais tempo na França. Eram amigos dos Arraes. Todo povo exilado vivia no mesmo círculo de amizades. E a gente se conhecia do Rio de Janeiro. E a gente saía. O meu pai me levou com o Walter para a gente ver um show do Simonal. Me lembro até hoje. No Maracanã.
Cineweb - Você acompanhou as diversas versões do roteiro com o Walter ?
Marcelo - Sim. Lado a lado com ele. Fui muito cuidadoso com relação a isso, porque eu tinha dúvidas e fazia muitas perguntas. Não só perguntas minhas, mas das minhas irmãs. Elas mandavam informações. Porque eu tinha 11 para 12 anos [quando o pai desapareceu]. Então tem coisas que as irmãs, como são mais velhas, lembraram melhor. E detalhes que eu não lembrava. A Ana Lúcia, por exemplo, refez a planta da casa.
Cineweb - Você foi ao set?
Marcelo - Fui. Estava com receio de ir. Primeiro, porque não gosto de me intrometer. Segundo, porque não sabia qual sentimento ia vivenciar ao ver uma casa igual à minha, com as mesmas cores, os mesmos móveis - porque eles fotografaram os móveis. Aí eles acharam uma casa muito parecida no Rio de Janeiro e mobiliaram de acordo com as instruções das minhas irmãs. Porque eu me lembrava de poucas coisas, elas lembraram mais. E eu fui. Quando eu entrei na casa, me deu uma coisa, como se eu tivesse voltado 50 anos. Porque os produtos que estavam nas prateleiras eram os que a gente usava na época. Aí eu senti a mesma vibração, o mesmo cheiro, o mesmo astral que estava congelado há 50 anos. Foi um choque para mim.
Cineweb - É como ver um sonho na sua frente.
Marcelo - Exato. O Selton, quando ele começou a se transformar no Rubens, com o bigode, foi um choque. A gente vê as fotos e se diz: “Não é possível, é igual”. Ele engordou para o filme e começou a entender como ele era. O Selton é meu amigo há muito tempo. Ele começou a entender o Rubens um pouco através do que ele me conhecia, e pelas fotos, e começou a nos telefonar revoltado com o figurino. “Mas teu pai não usaria isto jamais!”. A gente perguntava para minhas irmãs. E ele foi entrando no personagem. E a Nanda, pelo amor de Deus. É um camaleão. Ela é capaz de fazer uma série inteira de biquíni, que é Fim, e é capaz de fazer a Eunice Paiva. É um fenômeno. Não tem nem o que falar. Ela lia muito, viu todas as fotos, pesquisou muito, ela via as entrevistas. Ela descobriu entrevistas da minha mãe que nem eu tinha visto. E as falas, as frases, o jeito de falar, as pausas. Minha mãe era uma pessoa muito educada. Toda vez que a gente se sentava na mesa, ela dizia: “Olha a postura”. Ela era chique. Engraçado, porque ela não era uma pessoa quatrocentona, da elite paulistana ou da aristocracia.
Cineweb - De onde veio a família dela?
Marcelo - Meu avô veio de Bari, de Polignano a Mare. Era um lugar muito pobre na Itália. E minha avó, de Modena. Eles vieram para o Brasil porque estavam na miséria. Minha avó trabalhava em cultura de algodão. E eles moravam num galpão de cereais no Mercado Central de São Paulo. Meu avô vendia arroz. No segundo andar, ficava todo mundo. Aí meu avô começou a ter mais dinheiro e colocou as filhas no Sion, que era escola da burguesia. Então minha mãe começou a virar uma pessoa que combinava aquela força do sul da Itália com uma elegância de comer com os talheres certos, beber uma bebida de qualidade. Ela amava Paris. A minha irmã Ana Lúcia mora em Paris há uns 40 anos. A minha mãe tinha muito orgulho da filha dela morando em Paris. Todo mundo em casa sabia falar francês, por conta da escola. Só eu aprendi a falar italiano. E a Fernanda captou isso direitinho.
Cineweb - Eu sempre pensei, antes de ler o seu livro, que sua mãe era advogada desde sempre, desde antes do desaparecimento do seu pai. Nunca pensei que ela fez tudo isso depois.
Marcelo - Ela era formada em Letras. E lia muito, todos os clássicos. Então, ela criou uma ética não por conta da faculdade de Direito, mas que veio dela. Minha mãe via que eu não era muito religioso e ela me disse: “Eu respeito que você não seja religioso, mas, por favor, você já prestou atenção na ética? Não na Igreja, mas na ética, no que foi Cristo, nas palavras do Cristo? No que significa dar a outra face? O que significa que todo mundo é igual perante Deus? O que significa ‘ninguém será escravo?’” Essa pra mim é a verdadeira Igreja, não essa igreja dos rituais, até as interpretações falsas dos profetas que apareceram. Depois disso, eu fui estudar a Bíblia, num grupo de estudos em Stanford. E vi que de fato essa ética da minha mãe não é uma ética que veio da faculdade de Direito, veio da história da humanidade. Uma mistura de Dostoiévski com Cristo.
Cineweb - E nos anos 1970 a Igreja Católica tinha a Teologia da Libertação.
Marcelo - Exato, era muito aliada dos movimentos sociais e da resistência. D. Hélder Câmara, D.
Paulo Evaristo Arns, o próprio papa [Paulo VI]. A Igreja Católica era nossa aliada. Depois, junto com o mundo, ela também foi para a direita. Mas agora está voltando, com o papa Francisco. Deu uma recuperada no respeito à Teologia da Libertação.
Cineweb - O filme trabalha essa questão da presença/ausência do seu pai. Quando vocês tiveram essa percepção de que ele não ia mais voltar?
Marcelo - A gente nunca teve essa conversa. Talvez minha mãe tivesse mais informações, mas ela não dividia com a gente. Nunca a vi chorando. A gente sabia que ela estava chorando trancada no quarto. Em todas as casas onde moramos depois, os quadros estavam do mesmo jeito. O padrão era o mesmo, só que não. A gente tinha empobrecido muito. Mas ela mantinha os mesmos móveis de mogno, os quadros, a estante cheia de livros. E a bebida, como eu falo no livro e tem no filme, ela pegava uma garrafa de uísque estrangeiro e misturava com o brasileiro. Porque ela não queria mostrar para os amigos que ela tinha empobrecido. Queria mostrar que ela continuava digna. E eu dizia pra ela, “mãe, você não precisa fazer isso, todo mundo sabe que a gente está precisando muito de dinheiro”. Mas ela dizia
“não, é muito importante, porque depois da segunda dose ninguém percebe mais a diferença”. É o que ela fala no filme.
Ana Lúcia - A gente não dizia entre nós que meu pai tinha desaparecido. Tínhamos medo, éramos crianças. Mas a gente nunca conversou sobre isso. E bem mais tarde, quando o Waltinho começou a fazer o filme, pouco tempo atrás, é que a gente começou a conversar sobre isso. Um perguntava para o outro: “Mas o que é que você dizia?” Eu dizia que era um acidente de carro. Um dizia que tinha tido um enfarte. A gente não combinou isso e a gente descobriu que cada um contava uma história. Não podia dizer que ele era desaparecido político. Era perigoso dizer. Então a gente inventava e cada um inventava uma história. Sem combinar nada e nem que alguém tivesse dito que não podia falar nada. A gente percebeu que, quando a gente falava, ficava todo mundo assim, então a gente mudava de história. Levamos muito tempo. Há pouco tempo que eu falo que ele é desaparecido político.
Marcelo - Porque as pessoas se afastaram. As crianças não, as crianças não sabiam. Mas os pais falavam, “cuidado com essa família, comunista”. Os empresários se afastaram dela. Ela mudou o círculo de amizades dela. De mulheres todas com problemas como ela, desquitadas - o que na época era tabu -, viúvas (Lygia Fagundes Telles era amiga da minha mãe), lésbicas (que também eram discriminadas), e virou um novo ciclo de amizades da minha mãe. Ficaram uns poucos que não tinham esse ranço, esse pavor de se relacionar com alguém envolvido em política.
Cineweb - E ela ficou sem poder mexer no dinheiro da família. Não era oficialmente viúva, não podia mexer em nada.
Marcelo - Sabe que, depois que ela ficou com Alzheimer, a gente achou travel checks. Do meu pai. Ele tinha assinado em cima, não embaixo. E a gente não podia descontar. Era uma grana. Aí um sobrinho meu que trabalha em banco levou e conseguiu resolver. Não sei como ele fez, se levou o atestado de óbito, mas resolveu. Depois de muitos anos. Meu pai e minha mãe tinham ações que a gente não sabia. Seguro de vida dele que nunca recebemos.
Cineweb - Para você, qual a importância deste filme neste momento atual?
Marcelo - Você se lembra, que, anos atrás, naquelas manifestações de rua, as pessoas pediam a volta do AI-5? Elas não sabem o que é o AI-5, nunca leram. Mas a minha geração sabe muito bem, viveu isso. Então, talvez as histórias tenham que ser recontadas sempre. E esse é o mérito do filme. A minha mãe teve a enorme capacidade de identificar o nosso problema como global. Ela sempre falava para a gente: “Isso não é pessoal, contra a nossa família. É contra o mundo”. Tanto que depois ela virou advogada de direitos indígenas. Ela viu na entrada na Amazônia pelas estradas os mesmos problemas políticos que a gente estava vivendo. Então, ela sempre fez esse trabalho de nos preparar para falar de uma forma não individualizada, não pessoal, não fazendo drama. E sim de defender os direitos humanos, ser ativista. Ela via o contexto global, era uma pessoa muito culta.
Cineweb -Talvez porque na Itália neste momento tenha um governo de extrema-direita eles possam se conectar também.
Marcelo - Na Itália, na França, nos EUA com o Trump, na Alemanha. As agressões contra estrangeiros, contra negros. As restrições contra a imigração, as pessoas falando “volte para sua terra”. Que terra? Como é que um americano pode chegar para um imigrante e dizer “volte para sua terra”? Que terra é que era deles? A terra era dos indígenas. Há brasileiros que são perseguidos em Portugal. Então, o mundo está vivendo um período muito individualista, de muito rancor e muito ódio, de uma simplificação de achar que o problema é o estrangeiro, que é a mesma simplificação que deu no nazismo. Eles alegavam que os problemas da Alemanha eram por causa dos judeus. Não eram, pelo contrário. Os judeus alemães só fizeram a Alemanha crescer, os cientistas, os banqueiros, os marchands, todos eles eram judeus. Não faz o menor sentido. Então a gente está revivendo coisas que a gente achava que tinham sido já enterradas. Mas não, talvez alguma coisa, uma epidemia de desinformação atacou as pessoas.
Cineweb - E as redes sociais tornam tudo mais tóxico e mais rápido.
Marcelo - Tudo isso está deixando as pessoas mais desconcentradas nas salas de aula. E as escolas estão com medo de abordar alguns temas, ou talvez possam estar ensinando de forma errada. Não é algo brasileiro, é algo que está acontecendo no mundo. O Partido Trabalhista ganhou na Inglaterra mas essas violências contra os imigrantes estão acontecendo lá. Não faz o menor sentido.