Animação brasileira atualiza o conto João e Maria
- Por Alysson Oliveira
- 04/02/2025
- Tempo de leitura 8 minutos
Os ratinhos Maria e João em cena do filme (Crédito: Divulgação)
Com passagem por veículos como Pasquim, Movimento, Versus e Folha de S. Paulo, além de jornais sindicais, Arnaldo Galvão ficou conhecido no começo dos anos 2000 com seu premiado curta Almas em Chamas, um filme apimentado, protagonizado por um bombeiro que é perseguido e seduzido por uma mulher obcecada por ele. O curta, literalmente, rodou o mundo, e foi premiado em diversos lugares. Mas também não é surpresa que seu primeiro longa, Fabulosos João e Maria, seja voltado para o público infantil. Afinal, em seu currículo ele conta com participações na equipe de Maurício de Souza, e dos televisivos RÁ-TIM-BUM, além de Glub-Glub e Castelo RÁ-TIM-BUM.
O roteiro de seu primeiro longa de animação junto com Flávio de Souza, parceiro desde o curta Almas em Chamas, parte do famoso conto dos irmãos Grimm, trazendo-o para a um mundo mais contemporâneo e protagonizado por uma dupla de ratinhos, que foge para a floresta encantada para evitar serem enviados a um reformatório. Nessa entrevista ao Cineweb, ele fala sobre esse trabalho, a parceria com Flávio e a longa jornada para o filme chegar às telas.
Você ficou conhecido com um curta adulto, mas também tem longa experiência com produção infantil. Como é conciliar as duas coisas?
A produção infantil precisa de muito rigor e cuidado. E está sempre evoluindo. O que considerávamos correto 5, 10 ou 30 anos atrás, não se aplica hoje. Nos anos 1960, os Flintstones exibiam publicidade de cigarro Wiston, nos intervalos dos desenhos. Até 2005, a publicidade de cerveja utilizava personagens de animação na sua comunicação. Hoje tudo isso é considerado ultrapassado e de mau gosto. Quando você faz algo voltado para o público adulto, você pode ultrapassar certas barreiras. Pensar na complexidade da vida adulta, na sua, dos amigos e fazer algo relacionado com isso. De uma forma geral, meus curtas são mais pessoais e abusados, enquanto minha produção infantil é uma forma de conversar com crianças, filhos e netos.
Como foi o começo do projeto João e Maria? E quanto tempo você trabalhou nele?
Fiz um curta abusado, para adultos, com o Flávio de Souza, que teve muita repercussão. Fomos selecionados para festivais ao redor do mundo e ganhamos prêmios importantes, como Gramado, Brasília e o Prêmio Grande Otelo. Isso foi em 2000. Decidimos que era hora de partir para a produção do primeiro longa-metragem. E começamos a trabalhar em algumas ideias. O Flávio de Souza se envolveu numa montagem de João e Maria, no Teatro Municipal. Foi uma megaprodução de final de ano com o Jamil Maluf. Então, João e Maria entraram em primeiro lugar na fila.
O trabalho que eles fizeram era monumental, mas muito próximo do conto original dos irmãos Grimm. Eu queria fazer algo mais contemporâneo, que falasse do nosso tempo atual como uma crônica. O primeiro tratamento foi selecionado para o Laboratório Sesc de Roteiro, coordenado pela Carla Esmeralda em 2008. Ganhamos um edital do MinC em 2015 e o dinheiro foi depositado no final de 2018. Começamos a produzir em 2019 e logo depois pegamos a pandemia pela frente, quando tivemos que aprender a trabalhar remoto. O filme ficou pronto em 2022 e começamos a buscar distribuição, quando os cinemas estavam vazios. No final de 2024, conseguimos um aporte da Spcine, específico para distribuição, e chegamos agora aos cinemas nesse momento lindo, quando Ainda estou aqui e Auto da Compadecida 2 levam, cada um, 4 milhões de pessoas para os cinemas.
Arnaldo Galvão, diretor do longa (Crédito: Divulgação)
Flávio de Souza é um dos grandes roteiristas da produção audiovisual infanto-juvenil brasileira. Como foi trabalhar com ele?
Trabalhar com o Flávio de Souza é sempre inspirador e divertido. E sim, ele é um mestre da produção audiovisual infanto-juvenil brasileira. E não é só isso. Flávio também é conhecido por uma dramaticidade potente como na peça Fica comigo essa noite. No final dos anos 1990, viajamos juntos para Gramado e voltamos no mesmo avião, quando ele propôs fazermos nosso primeiro trabalho independente juntos. Como provocação, brinquei que não queria nada infantil e sim algo para adultos. Seria algo como Fica comigo essa noite, mas com muito sexo. Ele me entregou um roteiro no dia que estava fechando um edital para produção de curtas. Não tive tempo de preparar desenhos, então fiz as cópias do roteiro e coloquei fogo nas bordas. Entreguei o projeto do curta Almas em Chamas ainda fumegando. Ganhamos, claro.
O filme tem cores vibrantes, muitas vezes sólidas. Como foi pensar na estética?
Produzir um filme de animação é sempre uma aventura de longo prazo. Você precisa escolher uma história de que goste muito, porque vai conviver com ela durante muito tempo. A escolha da equipe também funciona assim. Cada pessoa que entra no projeto precisa estar muito afinada. Quem fez a direção de arte do Fabulosos João e Maria foi o Eloar Guazzelli, que é um dos principais quadrinistas brasileiros. Ele ganhou o prêmio Jabuti diversas vezes e teve um ano que ganhou dois prêmios principais. Ele já adaptou até Guimarães Rosa para quadrinhos. O último trabalho dele, em parceria com a historiadora Fernanda Verissimo, chama-se A Batalha, e é uma HQ sobre a batalha de Mbororé, que ficou conhecida por definir a fronteira do Brasil com os países vizinhos.
A montagem, também, é bastante esperta, dialogando com o público infantil de hoje, mais acostumado com uma linguagem de audiovisual assim. Como foi a construção dessa narrativa?
Por uma característica que distingue do filme tradicional, a montagem na animação é decidida num processo posterior ao roteiro, chamado storyboard, quando transformamos o roteiro numa espécie de história em quadrinhos. Nesse momento, já conseguimos definir o ritmo do filme, trocar sequências e fazer o que é considerada a primeira etapa da montagem. Depois, ainda filmamos todos esses quadrinhos, colocamos vozes e músicas e fazemos mais um ajuste na montagem. É um processo que vai sendo construído, lapidado e refinado ao longo do tempo. Depois, com o filme já pronto, com cores, música e efeitos, fazemos o último ajuste. Esse processo geralmente demanda uma equipe muito grande, mas no caso do Fabulosos João e Maria podemos creditar o Claudio Vieira de Oliveira e o Alexandre Santos, que tiveram participação decisiva nesse processo.
E como foi o trabalho da trilha sonora, que é importante no filme?
O Luiz Macedo é outro desses parceiros que sempre penso quando começo essas jornadas. Nós nos conhecemos também produzindo aqueles programas bacanas da TV Cultura, como RÁ-TIM-BUM, além de Glub-Glub e Castelo RÁ-TIM-BUM. E depois ficamos irmãos. Foi muito divertido fazer as escolhas das músicas e temas. Construímos como um recital pop para crianças, mas fizemos muitas piadas que só os pais vão entender. Além da trilha sonora criada pelo Luiz Macedo, escolhi duas músicas, uma para a abertura e outra para o encerramento, que são clássicos da música popular brasileira e tem uma relação muito intrínseca com o filme: “2001”, de Rita Lee e Tom Zé, que narra a aventura de um astronauta que sai de casa sem saber o que vai acontecer. Essa música é interpretada no nosso filme por Juçara Marçal, e o Kiko Dinucci fez os arranjos. A segunda é “Babá Alapalá”, de Gilberto Gil que fala sobre a família e ancestralidade, o tema principal de Fabulosos João e Maria. No filme, é cantada por Nêga Duda e André Abujamra, que também fez o arranjo.
O conto original é do século XVIII. Como você acredita que a adaptação se relaciona com as crianças no Brasil de hoje?
Bem que eu queria que esse tema de “crianças abandonadas” fosse algo do passado e não tivesse nada a ver com o que acontece hoje no Brasil, mas ainda estamos bem longe disso. Talvez o tamanho do desequilíbrio social que existia no século XVIII não seja igual ao de hoje, mas alguma coisa está fora de ordem, não? Enquanto existir o abuso econômico, onde as pessoas defendem o descaso com imigrantes, o uso de combustíveis fósseis, a supremacia branca em detrimento de negros, LGBT e índios, o uso da força no lugar da fraternidade, já sabemos que as crianças são sempre as primeiras a serem sacrificadas.