14/12/2024

Noé é um homem que vive para sua família, cuidando da mulher Naameh, dos três filhos e com olhos atentos para a preservação da natureza. Em sonhos, vê a Terra coberta pela água e sente que é um aviso divino. Decide procurar o avô, Matusalém, para decifrar o enigma.

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Mais ecofantástica do que propriamente bíblica, a aventura Noé, de Darren Aronofsky, não tem por que chocar qualquer religião – até porque não procura uma transcrição literal da Bíblia, como se espera de uma obra de ficção.
Ao abordar uma figura cara a cristãos, muçulmanos e judeus, no entanto, algumas polêmicas são inevitáveis.
 
Vários países muçulmanos já baniram o filme, antes mesmo de vê-lo, por oposição à ideia de representação de alguém considerado como mensageiro ou profeta de Deus. Entidades cristãs nos EUA também protestaram por um suposto desrespeito, por conta de uma brevíssima e distante cena em que se vê Noé nu e outra, que o mostra bêbado.
 
Essas controvérsias, que acabam também servindo à promoção do filme, no entanto, devem ser deixadas de lado, para que Noé seja avaliado como o que é – uma superprodução de orçamento estimado em US$ 125 milhões, justificado para um elenco estelar e uma profusão de efeitos especiais capazes de salientar-se nas versões 3D e IMAX.
 
Poucos atores além do neozelandês Russell Crowe caberiam melhor na pele deste protagonista, um homem simples, forte e determinado, que instintivamente protege a natureza. A julgar por sua família, aliás, a mensagem subliminar é que os vegetarianos herdarão a Terra. E herdarão mesmo, porque o dilúvio está próximo e não está previsto sobrar ninguém, exceto o pequeno clã de Noé.
 
Este pequeno círculo familiar, formado também por sua mulher Naameh (Jennifer Connelly) e três filhos, vive isolado, num tempo muito depois de Adão, Eva, Caim e Abel. Longe deles, o resto da humanidade dilapida os recursos do planeta e se entrega ao consumo da carne – inclusive, não raro, à antropofagia.
 
Noé é perturbado por sonhos, que ele identifica como seu canal direto de comunicação com Deus. Neles, ele vê o mundo ser engolido pela água e sabe que tem que fazer alguma coisa – mas não identifica bem o quê.
 
Isto leva a uma peregrinação em busca de Matusalém (Anthony Hopkins), seu avô, que tem centenas de anos. Estará vivo? Noé não sabe, mas sente que a importância de sua missão justifica atravessar as perigosas proximidades das cidades em nome de chegar lá.
 
Noé está certo, claro. E nesta primeira metade do filme, desenha-se com mais eficiência o aspecto de aventura fantástica, cósmica, que pisca um olho para o estilo de Terrence Malick (A árvore da vida), mas está mais próximo de James Cameron (Titanic) – inclusive por conta do tema aquático-catastrófico. Neste segmento, mantém-se o interesse no filme e a simpatia por esta família - que, no caminho, acaba salvando uma menininha ferida, Ila. Esta, como se verá, tem um papel fundamental nos eventos futuros, sendo não uma personagem bíblica, mas uma criação ficcional do roteiro, elaborado pelo diretor Aronofsky e seu parceiro, Ari Handel.
 
Matusalém tem bons conselhos a dar ao neto. E a viagem também lhe garante o apoio dos Guardiões, gigantes de pedra que parecem estranhamente com os Transformers e cuja força será essencial à construção da famosa arca.
Em termos de efeitos, alguns dos melhores criam as sequências em que os animais entram na arca – e que serão adormecidos por uma providencial fumacinha, que é uma boa sacada do roteiro para garantir a paz dentro da arca durante a travessia das águas.
 
O problema, justamente, está nas águas. Quando elas sobem, o filme começa literalmente a patinar. Poderia ser mais bem aproveitada, por exemplo, a questão da culpa de Noé – estimulado por seus filhos adolescentes, Sem (Douglas Booth) e Cam (Logan Lerman, de Percy Jackson...) – ao deixar fora da arca diversas pessoas inocentes. Se a inocência era a justificativa da própria existência da arca como proteção contra a fúria de Deus, como explicar o abandono de tantos à própria sorte, se ali dentro há espaço?
 
O desenvolvimento mais problemático está na forma abrupta como Noé passa de ecovegeteraniano pacifista a fundamentalista furioso. Isto porque, repentinamente ele mostra-se obcecado com a ideia de que Deus quer mesmo exterminar a humanidade. Na sua visão, os membros de sua família serão os últimos humanos na face da Terra, que ficará entregue aos animais e às plantas. Por isso, ele ameaça tornar-se assassino da própria descendência quando descobre que Ila (Emma Watson), namorada de seu filho Sem, está grávida – o que ele entende que contraria o plano de Deus, por permitir a continuidade da espécie.
 
O descontrole de Noé neste ponto é tanto que há momentos em que quase se pode simpatizar um pouco com o vilão Tubalcaim (Ray Winstone), um líder guerreiro, descendente do assassino Caim, que entrou escondido na arca. Pelo menos ele defende o livre-arbítrio humano, ainda que absoluto, diante dos misteriosos desígnios divinos, que podem não passar de uma expressão pura e simples das forças da natureza.
 
Mas é claro que toda esta fábula neo-mística/ecológica, dirige-se contra os instintos assassinos de Tubalcaim, que representa uma humanidade predatória, em última análise, até contra si mesma. Resta esperar que Noé recupere o juízo. Afinal, dele depende todo o resto da história da humanidade.
 
Decididamente, Noé não é para menores. Há violência, antropofagia e sugestão de incesto. Por isso, a censura 14 anos. 
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