Sucesso absoluto na França, país em que vendeu mais de 80.000 exemplares em sucessivas reedições, a graphic novel Quai d’Orsay, de Abel Lanzac e Christopher Blain, é a base do filme O Palácio Francês, em que o veterano diretor Bertrand Tavernier (A Isca, Por volta da meia-noite) se reinventa com uma comédia política e feroz – e baseada em fatos espantosamente reais.
Abel Lanzac, na verdade, é o pseudônimo literário do diplomata Antonin Baudry, que partiu de sua própria experiência como redator de discursos do ex-ministro de Relações Exteriores, Dominique de Villepin. Desse mergulho nos bastidores do poder francês, Baudry extraiu um relato cínico, que revela a histeria, a imprevisibilidade, mas também a sofisticação cultural de seu ex-chefe, cujo ponto alto na carreira foi um famoso discurso na ONU contra a guerra do Iraque, em 2003.
Tanto na graphic novel quanto no filme, os nomes dos protagonistas foram trocados. Assim, o ministro é rebatizado como Alexandre Taillard de Vorms (Thierry Lhermitte). Em torno dele, no Quai D’Orsay, sede do ministério, agita-se um exército de assessores e conselheiros, todos mantidos no limite do ataque de nervos por uma rotina exasperante, imposta não só pela sensível pauta do ministério, como pela personalidade errática de seu comandante.
Não raro, o ministério parece uma casa de loucos, agitada por telegramas e telefonemas que, dia e noite, relatam as intermináveis crises mundiais, em locais tão distintos quanto o Oriente Médio e a África. É neste vespeiro que vem parar o jovem Arthur Vlaminck (Raphaël Personnaz), recém-formado pela prestigiada ENA (École Nationale d”Administration), especialmente para redigir os discursos do ministro.
Não que Arthur tenha imaginado que sua missão seria fácil. Mas o que o espera é um pesadelo kafkiano, cujas proporções sempre superam as piores perspectivas. Não só em relação às guerras e impasses diplomáticos sobre as quais a França tem que se pronunciar, mas principalmente quanto à insatisfação permanente do ministro com tudo e todos.
Poeta e fã do filósofo grego Heráclito, Taillard a toda hora muda de ideia sobre a linha dos textos. Dá uma diretriz pela manhã, apenas para desmenti-la por completo horas depois. Arthur mergulha numa ansiedade permanente, não raro sem conseguir comunicar-se com o chefe, que pula de uma reunião a outra.
Uma rara voz de calma e bom senso vem do chefe de gabinete Claude Maupas (Niels Arestrup, vencedor do César 2014 de melhor coadjuvante). Pragmático, Claude conhece os caprichos do chefe e dá bons conselhos a Arthur, que permitem que ele poupe um pouco de sua energia, já que seu tempo ele não pode mesmo preservar. Todos ali dentro não têm direito a uma vida pessoal, o que incomoda a namorada de Arthur, a professora primária Marina (Anaïs Demoustier).
No ambiente competitivo do palácio, Claude é, no entanto, uma figura isolada. O mais comum é que os conselheiros do ministro sejam tão malucos quanto o chefe, dificultando o próprio acesso às necessidades de informações de Arthur ou mesmo criando armadilhas para ele. Este é o caso, por exemplo, da sensual conselheira para assuntos africanos, Valérie Dumontheil (Julie Gayet, indicada ao César e pivô do escândalo que causou a separação do presidente francês, François Hollande).
Do ponto de vista do tema, várias discussões podem parecer áridas demais ao espectador brasileiro. Para este, O Palácio Francês tem como principal atrativo o desempenho deste elenco afinado, em que se destacam o jovem Raphaël Personnaz e particularmente o veterano Thierry Lhermitte, que tem em suas mãos um personagem contraditório, dotado de iguais doses de carisma e antipatia – e dá muito bem conta de um retrato que o humaniza, sem vilanizá-lo, mas também sem absolvê-lo de seus pecados.