Quando lançado, em 1966, o gibi do primeiro super-heroi negro de quadrinhos mainstream, Pantera Negra, de Stan Lee e Jack Kirby, foi premonitório – antecedeu de alguns meses a criação do movimento político dos Panteras Negras, que se propunha à autodefesa da população afrodescendente dos EUA contra o racismo e a violência.
Cinquenta e dois anos depois, o lançamento do filme Pantera Negra, de Ryan Coogler, insere-se na busca de uma nova narrativa de autovalorização da negritude, num país que ainda não superou a violência racial, como atesta a própria existência do movimento Black Lives Matter.
No Brasil, apesar do alto percentual de população afrodescendente e da persistência do racismo, é difícil saber se o filme terá repercussão semelhante, até porque os referenciais culturais e sociais são outros. Mas, de todo modo, Pantera Negra frequenta um imaginário alternativo ao discurso que coloca personagens negros como inferiores e oprimidos, com um elenco predominantemente negro, assim como seu diretor, corroteirista, desenhista de produção e figurinista.
No centro da história está Wakanda, um reino africano isolado, altamente desenvolvido tecnologicamente, cujos habitantes criaram uma civilização avançada e pacífica. Um verdadeiro paraíso futurista, em que carros voadores coexistem com florestas e cachoeiras, mas cuja superioridade é mantida oculta aos olhos do mundo mediante uma camuflagem que o disfarça como um país pobre. De todo modo, ficou imune aos males da colonização e da escravidão.
O grande segredo deste progresso é o vibranium, elemento extraído de um meteoro alienígena caído ali, altamente poderoso e quase indestrutível – faz parte, aliás, da liga que compõe o escudo do Capitão América, por exemplo. Mas, apesar de todo o sigilo, criminosos já descobriram os poderes do material, conseguindo roubar alguma quantidade dele, façanha do traficante de armas Ulysses Klane (Andy Serkis).
Este incidente, aliado à morte do rei de Wakanda, vão exigir a tomada de posição de T’Challa (Chadwick Boseman), seu filho, que se tornará o Pantera Negra. Não se trata de uma simples subida ao trono. O príncipe tem que submeter-se a uma série de rituais desafiadores, bem como a luta contra outro postulante de uma das demais tribos que compõem a nação, num processo supervisionado pelo sábio Zuri (Forest Whitaker).
Ainda que um elemento mitológico embase estas representações, o habitual ar retrô dos relatos envolvendo monarquias é contraposto não só pelo visual futurista – trabalho de primeira da designer de produção Hannah Beachler - como por uma maciça e diligente presença feminina na tela – como a irmã de T’Challa, a princesa Shuri (Letitia Wright), cientista que projeta os novos equipamentos e a própria roupa de super-herói do irmão; a influente rainha-mãe Ramonda (Angela Bassett); a aguerrida agente de inteligência Nakia (Lupita Nyongo’o), interesse amoroso relutante do príncipe; e a guarda real Dora Milaje, batalhão todo feminino liderado pela general Okoye (Danai Gurira).
No roteiro, escrito a quatro mãos por Coogler (diretor premiado em Sundance 2013 com o drama Fruitvale Station – A última parada) e Joe Robert Cole, o novo rei terá que enfrentar desafios como um novo rival, Erik (Michael B. Jordan) – que, criado nos EUA, carrega consigo os traumas da experiência afro-americana -, a traição de antigos amigos e as ameaças do mundo exterior, personificadas não só pelo vilão Klane, quanto por um curioso agente da CIA (Martin Freeman) – cujo perfil benfazejo é talvez o detalhe mais absurdo de toda a fábula.
O que está em jogo é não só a sobrevivência de Wakanda como sua obrigação moral de compartilhar seus avanços com o resto do mundo. Num tempo de decadência das utopias, não é uma proposta tão modesta assim. E T’Challa encarna um herói cool, bem de acordo com os novos tempos.
Comparado com outros heróis do universo Marvel, o Pantera Negra é mais consciencioso e menos debochado do que Thor, muito mais moderno do que o Capitão América, menos barulhento do que o Homem de Ferro e tão atlético quanto o Homem-Aranha, embora bem mais sexy. De todo modo, o filme consegue ser divertido explorando os riscos de uma mitologia não testada. Esse é seu grande diferencial e grande desafio.