Cleo (Yalitza Aparicio) trabalha como empregada, mas é praticamente da família. Vive na casa dos patrões, ajuda a criar os filhos e até pode sentar-se na sala para ver televisão com eles – desde que se conforme a ficar no chão. E ela não se importa. Cleo é a protagonista de Roma, do mexicano Alfonso Cuarón, que levou o prêmio máximo no Festival de Veneza em 2018 e conquistou 10 indicações no Oscar 2019. Roma é um épico intimista sobre a vida de uma jovem empregada – e é uma verdadeira subversão ideológica dar o posto de heroína à subalterna.
Escrito, dirigido, fotografado e montado por Cuarón, Roma é um estudo de classe num conturbado México do começo da década de 1970. Com imagens num preto-e-branco que evoca o neorrealismo italiano, o filme investiga as relações de trabalho que são permeadas pela emoção. É uma obra que talvez o público europeu e norte-americano não seja capaz de captar toda sua sutileza e questões – no Brasil, no entanto, não é difícil entender o que está se passando. Pode-se até identificar pontos em comum com Que horas ela volta?, de Anna Muylaert.
Cleo é jovem e de poucas palavras – algumas delas, no idioma mixteco – mas dona de um olhar sagaz, interpretada por uma atriz estreante cujos olhos falam mais do que qualquer coisa que ela verbalize. É por esses olhos que acompanhamos o desmoronamento do casamento dos patrões, o dr. Antonio (Fernando Grediaga) e a dona Sofía (Marina de Tavira), quando ele a abandona para viver com outra mulher – um segredo que os filhos não podem saber. Para eles, o pai está em Quebec fazendo uma pesquisa.
A empregada também tem sua vida própria, envolvendo-se com um jovem (Jorge Antonio Guerrero), especialista em artes marciais que é treinado para algo que só descobriremos mais tarde. A rotina de Cleo é narrada sem pressa, com riqueza de detalhes, assim como a vida de todos os personagens. Ao final do filme, tem-se a sensação de ter convivido um tempo enorme com essas pessoas. A grandiosidade de Roma está nas pequenas coisas, na lateral do carro que sempre raspa na parede para entrar na garagem, no amolador de facas que passa com seu assobio, na trilha de Jesus Cristo Superstar tocando na festa de Natal, ou no grande dilema da protagonista.
Cuarón criou o filme a partir de suas memórias de infância, mas não dá o peso do ponto de vista a nenhuma das crianças. É uma narrativa que se abre por si só, começa de maneira tão leve, quase banal, que poderia ser sobre qualquer pessoa. Mas Cleo é quem tem uma vida mais rica – a pessoa mais simples da família e a mais complexa.
Visualmente, Roma é uma festa. Seus planos são longos e fluidos – ainda assim, não existe um exibicionismo técnico, pelo contrário, é possível esquecer este primor, tamanha a possibilidade de se embrenhar na vida daquelas pessoas. A estrutura quase episódica acumula pequenos momentos que anunciam que uma tragédia poderá vir, sob o manto da normalidade do cotidiano – seja com um terremoto, uma manifestação estudantil violentamente dispersada (um episódio que ficou conhecido como o Massacre de Corpus Christi, ocorrido em 10 de junho de 1971), num hospital ou no mar. Mas Cuarón é, como sua filmografia atesta, sagaz. Ele encontra o que há de mais humano nessas figuras – ninguém é vilanizado, especialmente a patroa, Sofía, é dotada de um humanismo comovente – mesmo com o peso das diferenças de classe que recaem sobre a relação dela e Cleo.
A teórica indiana Gayatri Chakravorty Spivak tem um texto famoso chamado “Pode o subalterno falar?”. Durante as pouco mais de duas horas de Roma, Cleo pouco fala, pouco age – geralmente reage – mas há um momento-chave, quando fala, quase sussurrando, e o mundo desaba, tudo faz sentido. A ousadia de Roma é colocar como protagonista aquela que está no quartinho dos fundos e que não pode usar a eletricidade para não pesar na conta. Mais do que isso, Cuarón faz um filme com ela ao centro, um filme extremamente feminino e visualmente exuberante – ao contrário de uma estética “suja”, que comumente se usa para retratar os pobres.
A Roma do título é um bairro de classe média na Cidade do México, mas é também uma referência ao clássico Roma, Cidade Aberta e ao neorrealismo – embora Amarcord possa ser outra referência cabível. Roma pode ser também um lugar dos sonhos, uma utopia de uma vida melhor. Ou para onde vão os aviões que de tempos em tempos cruzam o céu. Roma é, acima de tudo, um grande filme, um ponto alto na carreira de um cineasta cuja filmografia é repleta de pontos altos.