25/04/2025
Guerra Drama

Destacamento Blood

Quarenta anos depois de terem lutado no Vietnã, quatro ex-soldados e amigos voltam ao país, em busca dos restos mortais de seu comandante, morto em combate, e de um ouro que esconderam naquela época. Velhos fantasmas e novos perigos tornam seu caminho muito arriscado.

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Você pode até não reescrever a História - mas tem o direito de repensá-la o tempo todo. É isto o que o diretor Spike Lee faz em seus filmes, repropondo o pensamento sobre o significado da presença negra na História norte-americana. Isso e muito mais é o que ele realiza em seu mais recente filme, Destacamento Blood, além de, naturalmente, embaralhar gêneros e referências, de modo a que seu espectador tenha elementos para sair transformado da experiência.
 
A propriedade com que Lee concretiza tudo isso, a essa altura de sua vitoriosa carreira, é sempre um grande prazer de assistir. Partindo de um roteiro, assinado por Danny Bilson e Paul de Meo, que fora pensado para quatro protagonistas soldados e brancos, o diretor associou-se ao parceiro Kevin Wilmott, com quem dividiu o Oscar de roteiro pelo ótimo Infiltrado na Klan, e reescreveu a história, colocando afro-americanos no lugar. Evidentemente, mudou tudo, criando um filme de guerra que é uma comédia dramática e também uma aventura policial com pitadas de política, discussões éticas e situações de romance e drama familiar.
 
O quarteto original é formado por Paul (Delroy Lindo, no papel de sua carreira), Melvin (Isiah Whitlock Jr.), Otis (Clarke Peters) e Eddie (Norm Lewis), ex-veteranos do Vietnã reunidos para uma volta ao passado. Eles retornam ao país onde lutaram em sua juventude, oficialmente para resgatar os restos mortais de Norman (Chadwick Boseman), o líder de seu pelotão que morreu na guerra. Por trás da missão declarada, eles têm outra - recuperar barras de ouro que esconderam décadas atrás.
 
Circulando entre todos estes gêneros e uma profusão de elementos capaz de atordoar, o diretor monta um filme que consegue ser entretenimento, mantendo a adrenalina alta, ao mesmo tempo que conecta seu público com a psicologia particular de cada um destes personagens, aos quais se somará David (Jonathan Majors), o filho de Paul, um guia vietnamita, Vinh (Johnny Nguyen), Tien (Y. Lan), mulher do passado de Otis, Desroche (Jean Reno), um intermediário francês de quem dependem para transformar o ouro em dinheiro, e um trio de desativadores de bombas, incluindo outra francesa, Hedy (Mélanie Thierry). A presença francesa, aliás, serve como pretexto para uma discussão carregada de ironia sobre o papel do colonialismo e do imperialismo. 
 
A longo do caminho - filmado em paisagens da Tailândia e do Vietnã -, as emoções dos velhos companheiros são testadas. É notável como o filme constroi a conexão entre eles ao mesmo tempo que desenha seus traumas, carregados no corpo, como a perna torta de Eddie, e sobretudo na psique atormentada de Paul - um personagem devastado não só pela síndrome do estresse pós-traumático como por uma série de fantasmas interiores, para ele muito reais, intoxicando sua relação com a vida e o mundo. O fato de que Lee tenha decidido fazer de Paul um eleitor de Donald Trump, capaz de envergar pelo Vietnã afora um daqueles clássicos bonés com os dizeres “Torne a América Grande Novamente”, é apenas um dos sinais das contradições imensas deste homem, que a interpretação de Delroy Lindo transforma em nada menos do que fascinante, magnética, inesquecível, como um irmão de alma de Kurtz (Marlon Brando), de Apocalypse Now, só que revestido de outras camadas e, por isso, muito mais humano. 
 
Referências, como a Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola - através do recurso à Cavalgada das Valquírias, de Wagner, no começo da incursão à selva vietnamita -, a O Tesouro de Sierra Madre, de John Huston, e inúmeros filmes de guerra, não faltam, sendo revestidas pelo estilo inconfundível de Lee. Ele começa seu filme com trechos documentais, como uma entrevista de Mohammed Ali, em 1978, em que ele reitera sua recusa de lutar no Vietnã. Ao longo do filme, o diretor fará diversas inserções como essa, materializando citações a figuras míticas do universo afro-americano, como Crispus Attucks, uma das primeiras vítimas da luta pela independência dos EUA, Milton Olive III, primeiro soldado negro a obter uma medalha de honra (póstuma) no Vietnã, os atletas Edwin Moses, Tommie Smith e John Carlos, além dos notórios Malcolm X e Martin Luther King, entre vários outros. Com estas inserções, Lee não pretende apenas ser claro - quer passar seu recado sobre o quanto foram muitas e nobres estas contribuições negras que, não raro, são invisibilizadas.
 
Pode-se, perfeitamente, assistir ao filme focado apenas no desfrute de uma história com tantos componentes de ação, suspense, aventura, drama e comédia. Mas será inevitável dispor de tudo isso através de um novo prisma, que repropõe os olhares que se pode ter sobre essa realidade em que as vidas negras, tantas vezes, são desprezadas - como no próprio Vietnã, em cujo contingente de soldados norte-americanos, os afro-americanos, 11% da população norte-americana, eram nada menos de 32% do total, lutando por um país que tantas vezes lhes subtraiu seus direitos.

Na ficção do filme e fora dela, a ideia central de Destacamento Blood, é a de reparação - ela é possível, afinal? Este mote eleva o patamar do filme muito além de uma simples aventura, ou de um mero drama de acertos de contas. E até o detalhe de que, nas cenas de flashback, Paul, Melvin, Otis e Eddie não tenham sido digitalmente rejuvenescidos ou interpretados por colegas mais jovens, tem um significado, É, afinal, com os olhos e as cicatrizes de hoje que estes veteranos se debruçam sobre as suas memórias e correm o risco de não sobreviverem a esta nova guerra.

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