Um toque sutil de realismo fantástico impregna a estreia na ficção da diretora franco-síria Soudade Kaadan, já a partir do título, O dia em que perdi minha sombra. Ao longo da narrativa, torna-se mais clara sua opção por retratar a guerra não a partir da abordagem crua de um campo de batalha, mas sim do ponto de vista dos civis que sofrem seus efeitos enquanto tentam desesperadamente suprir as necessidades mínimas do cotidiano.
A entrada em cena de Sana (Sawsan Arshid) e seu filho é peculiar. Ela sobe apressadamente as escadas do prédio onde mora, ultrapassando obstáculos no caminho - como uma patrulha fardada que pede identificações. A correria, a urgência para colocar roupas sujas numa precária máquina de lavar, na iminência da falta de luz, todo essas atitudes físicas dizem muito mais do que as palavras.
Estamos em estado de guerra, na Damasco de 2012 e as sombras são, de várias maneiras, uma questão de vida ou de morte. Numa cidade em que o fornecimento de eletricidade é precário, Sana e o filho cobrem-se com cobertores, usando-os como tendas, comem e conversam baixinho embaixo deles, ocultando tanto quanto possível a tênue luz de uma vela - ser muito visível neste contexto é tornar-se alvo de franco-atiradores.
Nada disto se diz explicitamente - se compreende. E esta é uma das qualidades de um filme que aposta mais nas imagens do que no excesso de explicações.
Sana leva adiante o dia-a-dia, driblando ausências, como a do marido, que trabalha no exterior, e a do patrão, dono da farmácia em que trabalha, um dos muitos desaparecidos na situação de guerra e repressão. A escassez pontua a sua e igualmente outras existências - faltam alimentos e, a esta altura, o gás, cujo preço sobe numa incontrolável cotação. Num dia em que sai à rua para tentar comprar um botijão, o destino de Sana esbarra no de dois personagens com quem compartilha a jornada infernal da história, os irmãos Jalal (Samer Ismail) e Reem (Reham Alkassar). O fracasso desta compra leva os três num trajeto que começa num táxi e se estende por um bosque, onde o risco de morte os acompanha a cada passo.
Desenvolvendo sua narrativa de forma fortemente simbólica, ainda que nutrida por um núcleo realista, a diretora infiltra nestes personagens o peso da situação da guerra, o desmonte do país, a insegurança onipresente - além do citado realismo mágico no detalhe da sombra, que é perdida por algumas pessoas. Numa live organizada pela 15a. Mostra Mundo Árabe em Casa, em que este filme teve sua primeira exibição brasileira, a diretora explicou que a sombra perdida foi a primeira imagem que lhe ocorreu sobre aquele que se tornaria o roteiro do filme. E destacou que o sentido metafórico desta perda não se inspira em nenhum misticismo ou religião.
O poder de sugestão pelo deslocamento febril de Sana, Jalal e Reem em seus caminhos fortalece um envolvimento emocional com estas figuras, colhidas em situações extremas, levadas a escolhas aflitas. Embora a diretora, alegadamente, tenha se furtado a fazer declarações políticas específicas, é muito claro como ela vê a atual situação de seu país: toda racionalidade foi abandonada, independentemente de qual seja o lado dos combatentes.
Com uma carreira de documentarista, Soudade Kaadan não deixou de injetar realismo a cada detalhe de sua história, diante ou atrás das câmeras. Forçada a filmar boa parte do filme no Líbano, ela teve dificuldades em escalar atores sírios, como pretendia. Vários deles eram refugiados no Líbano. Outros, depois do filme, pediram asilo em países como a França e a Alemanha. A diretora mesma, depois de radicar-se na França, agora vive na Inglaterra. A identidade síria hoje é uma dolorosa situação de exílio, mesmo para aqueles que ainda vivem em suas fronteiras.