Sentindo-se em perigo com mudanças que identifica na máfia, a que pertence desde a juventude, Tommaso Buscetta refugia-se no Brasil com sua mulher brasileira, Cristina, e opera seus crimes com nome falso. Descoberto, é extraditado à Itália e protagoniza uma das maiores delações dentro da Cosa Nostra siciliana, permitindo a prisão de centenas de mafiosos.
- Por Neusa Barbosa
- 11/04/2022
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Aos 81 anos, Marco Bellocchio é um dos últimos, senão o último representante de uma destacadíssima geração do cinema italiano, em que brilharam as estrelas de Federico Fellini, Ettore Scola, Dino Risi, Pier Paolo Pasolini e tantos outros. A obra de Bellocchio, que começa com De Punhos Cerrados (1965), é de marcado cunho político sempre.
Ninguém duvide de que O Traidor, que examina a trajetória do ex-mafioso Tommaso Buscetta (Pierfrancesco Favino), é mais um exemplar da série, ao traçar não só um perfil qualificado do delator que entregou diversos chefões da Cosa Nostra siciliana nos anos 1980 - o que foi o pilar da operação Mãos Limpas, liderada pelo juiz Giovanni Falcone (Fausto Russo Alesi).
O período carioca de Buscetta, ao lado da terceira mulher, a brasileira Cristina (Maria Fernanda Cândido), precede esta delação. Sua viagem ao nosso país já prenuncia o sentimento de que as coisas estão mudando dentro da máfia, em sua complexa estrutura de alianças e traições, que culminam em vinganças e assassinatos sangrentos. Tommaso é um sobrevivente porque sabe detetar as mudanças dos ventos a tempo e também por ser hábil em adaptar-se a circunstâncias inóspitas.
A própria temporada brasileira termina com grande risco pessoal para o mafioso, já que ele é preso pela violenta polícia brasileira durante a ditadura militar e barbaramente torturado - episódio que o filme retrata com total clareza, assim como uma impressionante cena em que a própria Cristina é colocada em perigo mortal, pendurada num helicóptero, para pressionar o marido a confessar suas ligações mafiosas.
É depois de sua extradição à Itália, em 1984, que começa sua colaboração com Falcone, que não é imediata. O duelo entre os dois, que não dispensa alguns ritos de mútua cortesia, aliás, é um dos pontos altos do filme.
Nas cenas de tribunal do maxi-processo contra centenas de mafiosos delatados por Buscetta - haviam sido expedidos nada menos de 360 mandados de prisão -, o filme constrói um centro dramático importante. Bellocchio capta o sentido de espetáculo deste julgamento, com estes capi cada um numa verdadeira jaula, gritando e xingando Buscetta quando este acusa um a um. É engraçado, patético e muito veraz, amparado numa pesquisa de dois anos não só das atas do tribunal como ouvindo-se diversos sobreviventes que conheceram Buscetta.
Coprodução entre o Brasil e a Itália, parcialmente filmado no Rio de Janeiro, o filme retrata uma época e oferece farto material para um reexame não só do papel da máfia como dos meandros da justíça. A Buscetta, cabe o perfil de um criminoso, sem dúvida, mas também o de um homem que fez uma série de escolhas, permitindo ao filme escapar do habitual maniqueísmo que cerca tantas produções sobre o tema. O bom e velho Bellocchio certamente ainda não perdeu a mão.