Publicado originalmente em 1982, A Cor Púrpura é um romance epistolar, no qual sua autora, Alice Walker, busca uma linguagem própria, fugindo do realismo típico da literatura caucasiana, para narrar a história de uma minoria. Mais do que a trama e as personagens, o que impressiona é a maneira como a escritora conta a trajetória da protagonista Celie. A partir daí, ela já cria um problema para quem se aventurar a adaptar seu livro para o cinema: como traduzir de uma mídia para outra algo tão específico que existe no papel. Poucos anos depois, Steven Spielberg tentou, com resultados um tanto mistos. Agora, mais de quatro décadas e um musical da Broadway mais tarde, Blitz Bazawule também se arrisca.
A nova adaptação do livro nasce, no entanto, de uma tensão que nunca se dissipará ao longo de suas mais de 2 horas. Musical é, primordialmente, o gênero do espetáculo, em que se pede do público uma abstenção da realidade, para aceitar que, do nada, personagens saiam cantando sobre suas dores e alegrias. Assim, por mais que um filme musical seja intimista, haverá a grandiosidade da música.
A Cor Púrpura é, basicamente, uma história de muito sofrimento e, inevitavelmente, redenção. Assim, é estranho que, num momento, uma criança conte a outra que seu pai tentou violentá-la e, segundos depois, as duas meninas cantem alegremente.
O roteiro, assinado por Marcus Gardley a partir do musical de Marsha Norman, tem uma dificuldade enorme de encontrar seu fio narrativo. Falta foco para que o amadurecimento dos personagens aconteça como se deve. A estrutura um tanto episódica, marcada por letreiros de cada ano na tela, impede uma evolução que não seja truncada.
A trama começa com a jovem Celie (Phylicia Pearl Mpasi) tendo mais um filho, fruto do abuso de seu pai (Deon Cole), que, novamente, leva a criança embora. Ela tem uma irmã, Nettie (Halle Bailey), considerada mais bonita e mais inteligente e, por isso, com direito de frequentar a escola enquanto a protagonista trabalha na loja do pai. Até que Celie é comprada em casamento por Mister (Colman Domingo), um viúvo medíocre, que quer a jovem apenas para criar seus filhos pequenos.
Após vários incidentes, Nettie acaba se separando de Celie, que promete escrever a ela todos os dias, e assim o faz. No livro, temos acesso às cartas dela, que são dedicadas a Deus, uma vez que não tem mais contato com a irmã. Porém, também temos acesso, a certa altura, às cartas de Nettie, criando assim a dupla narrativa do romance. O filme, de certa forma, elimina boa parte da história de Nettie. Na tela, temos apenas alguns momentos, marcados por clichês visuais e sócio-históricos que nunca dão a verdadeira dimensão da trajetória da personagem. Seria melhor eliminar toda a parte dela de uma vez do que contar mal contado.
De certa forma, A Cor Púrpura é, acima de tudo, a celebração da sororidade entre um grupo de mulheres negras, e Celie é cercada por Sofia (Danielle Brooks, indicada ao Oscar de coadjuvante), mulher de seu enteado Harpo (Corey Hawkins). Ela é a personagem mais forte de todo o filme, que não mede suas palavras, não aceita maus-tratos e acaba punida por isso. Entra também em cena Shug Avery (Taraji P. Henson), uma cantora sensual por quem Mister é apaixonado, mas que acaba se apegando a Celie e ajudando-a em seu processo. A última hora de filme é apressada de forma a construir o final um tanto óbvio e inevitável.
A dureza da vida de Celie se transforma aos poucos, muitas vezes aos trancos e barrancos e outras de forma inesperada e inexplicável. Suas dores e feridas, no entanto, parecem desaparecer quase que magicamente, tornando-a uma personagem que sofre, mas canta e dança. E não é que encontre na música um respiro para seu sofrimento, é apenas mais um fardo que ela tem que carregar para que o filme se sustente enquanto exemplar de um gênero.