Entre tantos outros predicativos, Hayao Miyazaki é mestre em criar mundos, que, geralmente, são uma mistura entre pesadelo e sonho. Habitar esses mundos não é uma opção, nem viajar até eles uma escolha. Os e as protagonistas de seus filmes podem ser arrastados para lá, e, ao fim, terão uma sabedoria além daquele de quanto entraram. O menino e a garça, seu anunciado canto do cisne, não é diferente, mas talvez seja seu filme mais pessoal beirando a autobiografia em alguns elementos.
Em 2013, Miyazaki anunciou que estava se aposentando, e Vidas ao vento seria seu último longa. Mas ele não conseguia parar de desenhar, e acabou criando uma nova história. Dessa vez, um garoto de 12 anos, Mahito Maki, que perde a mãe na época da Segunda Guerra, e vai morar com a madrasta, que está grávida num região remota, enquanto o pai está fora.
Sem amigos, solitário nessa casa, ele é abordado por uma garça que invade seu quarto. O animal é uma desculpa para Miyazaki trazer, mais uma vez, criaturas peculiares. Dentro dela, há uma espécie de duende, careca, narigudo e com dentes gigantes. O que o diretor quer dizer com esse bicho peculiar? Seria ele os traumas da guerra ou os traumas pessoais de Mahito? A jornada pelo mundo surreal levará o pequeno protagonista a enfrentar seus próprios medos e ansiedades – tal qual um país colapsado e destruído.
O que há em O menino e a garça é Vintage de Miyazaki. Pessoas familiarizadas com sua filmografia encontrará referências, como os warwara, pequenas criaturas esféricas que se inflam e sobem ao céu, que lembram muito a princesa-ovo ou, especialmente, os fantasminhas de Princesa Mononoke. São autorreferências que se acumulam e trazem novos sentidos naquilo que parece acontecer dentro de um mesmo universo. Não poucas vezes, esse lugar lembra A viagem de Chihiro, filme que foi o primeiro a vencer a categoria do Oscar de Longa em Animação, na qual, aliás, Miyazaki acaba de vencer novamente.
Visualmente, o filme é uma festa vinda de uma das imaginações mais criativas e inovadoras do animação. Cada frame é quase uma pintura em sua composição, no colorido e no cuidado. Resistindo à computação gráfica, Miyazaki e sua equipe ainda fazem os filmes manualmente, o que os deixam ainda mais especiais, além de uma textura e atenção aos detalhes em todo o quadro, não apenas onde está a ação principal.
Se muitas das protagonista do cineasta são mulheres, aqui, ele colona um garoto no papel central, mas ele está cercado por diversas figuras femininas fortes e visualmente intrigante. Do grupo de bachans à Lady Himi, uma mulher que domina o fogo, que lembra a mãe de Mahito, e o leva para as profundezas do mundo misterioso onde ele encontra, entre outros, um ancestral que lhe confere uma tarefa importante.
O mundo fantástico, com sua estranha reminiscência do dito real, é o palco da descoberta não apenas de si mesmo. Por anos, Miyazaki nos leva a mundos fantásticos, abrindo uma nova porta para o cinema, mas também para a compreensão do tempo em que vivemos. A jornada de Mahito, um espelho do próprio diretor, ressalta a importância da própria identidade – especialmente em tempos de guerra – mas que, para se chegar a fundo a ela, às vezes, é preciso, primeiro, passar por um purgatório.