O dia da posse, de Allan Ribeiro (O amor que nos consome), exercita mais uma vez aquela fusão de documentário e ficção que apaga suas fronteiras no próprio ato de filmar. O enredo define um tom ultra-intimista, tendo como um dos personagens o próprio diretor, incorporando as funções de câmera, corroteirista e outras, e seu protagonista, Brendo Washington, também roteirista.
Filmado no auge da pandemia, em meados de 2020, o filme captura, em forma e conteúdo, a emergência e a fluidez de toda a situação. A câmera inquieta procura fragmentos de sentido num cotidiano reduzido ao essencial, em que pessoas ficam confinadas em seus apartamentos com poucas opções a não ser conferir o estado das coisas espiando umas às outras através de suas janelas.
Dentro desse quadro, os sonhos, reflexões e confissões de Brendo, estudante de direito de 23 anos, ganham relevo, apresentando-se um personagem que visivelmente fura a bolha em que o cineasta está inserido e desafia seus conceitos - e é precisamente isto o que lhe interessa ao filmá-lo.
Há uma interação afetuosa entre os dois, o que não impede conflitos eventuais, fruto das diferenças de geração e vivências. Da parte de Ribeiro, o foco é reflexivo, narrando em off suas impressões sobre o que vê da janela e, ao mesmo tempo, olhando para o passado de sua família. Em conversas com seus pais, em chamadas de vídeo pelo celular, ele manifesta uma curiosidade sobre como os pais e os avós se conheceram.
Da parte de Brendo, a direção de seu olhar é para si mesmo, numa fase de entrada na vida adulta em que sonhos ainda podem ser um tanto delirantes - ele planeja, afinal, ser advogado, médico e presidente da República dentro de alguns anos e já ensaia seus pronunciamentos diante da câmera. E concilia com isso tudo outro sonho, de participar de um Big Brother. Esta é, afinal, uma geração que cresceu embebida pela internet e as mídias sociais.
Conversas sobre encenação, repetições de cenas e uma discussão sobre não querer ser dirigido desmontam as certezas sobre a veracidade puramente documental do que foi assistido - e isso é o que menos importa. O dia da posse é um veículo que nos embarca nas incertezas de um tempo presente, marcado por acontecimentos reais tão estranhos e inusitados que só se pode mesmo querer apegar-se à instável verdade humana que uma câmera pode ou não captar.